tag:blogger.com,1999:blog-69320256545176294342024-03-05T06:51:08.903-03:00Letras ElétricasHá tão pouca gente que ame as paisagens que não existem! (Fernando Pessoa)José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comBlogger566125tag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-4855812186885930662013-07-18T21:19:00.000-03:002013-07-18T21:19:04.674-03:00Migração CompletaEste blogue não será mais atualizado. A partir de hoje passo a escrever em <a href="http://www.letraseletricas.blog.br/">letraseletricas.blog.br</a>. Atualize seus <i>bookmarks, </i>altere seu feed, etc.<br />
<br />
O tema do novo blogue ainda é provisório, mas logo haverá um mais bonito no ar.<br />
<br />
É só aguardar.<br />
<br />
Adeus, Google, obrigado pelos peixes.<br />
<br />
Lembranças ao Obama.José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-14198858501414948172013-07-05T20:06:00.001-03:002013-07-18T21:17:09.968-03:00Restabelecimento do BlogApós vários dias com problemas na URL, finalmente parece que voltou tudo a funcionar por aqui. Tão misteriosamente como começou. O problema só ocorria com o navegador Firefox e o blogue carregava normalmente quando digitávamos “www”, mas isso é algo que já está caindo de moda.<br />
<br />
Aproveitei esses dias para praguejar contra a perda de visitantes e impressões do AdSense e para trabalhar na MIGRAÇÃO DO BLOG para outra plataforma. Nos próximos dias deverá debutar na web o novo endereço, http://letraseletricas.blog.br.<br />
<br />
Aguardem.José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-78852918900764417872013-06-30T15:17:00.000-03:002013-06-30T15:17:04.618-03:00Pequenas Irritações <p>Há quatro dias que não consigo acessar este blogue usando o Firefox (na verdade, o "IceWeasel" do meu Debian, mas você não precisava saber disso). Outros navegadores (SeaMonkey, Konqueror, Epiphany, Chromium) estão acessando normalmente. Nenhuma informação em lugar algum sobre as razões disso. O Google lava as mãos, os relatórios de bugs da Mozilla não mencionam coisa alguma (na verdade, mandam fazer checagens de rotina, que obviamente nada resolvem). E continuo forçado a ler este blogue no Chromium, que detesto.</p><p>Perdi um pouco do passo da escrita do Serra da Estrela e resolvi me dedicar a configurar um blogue em meu próprio computador, para já ir preparando o dia em que configurarei em um servidor alugado (e possivelmente sairei do Blogger). A última semana foi cheia, comigo testando nada menos que DOZE plataformas:</p><ol><li>Wordpress</li><li>Flatpress</li><li>Pluck</li><li>Habari</li><li>MovableType</li><li>Blosxom</li><li>Serendipity</li><li>Plone</li><li>PmWiki</li><li>DokuWiki</li><li>GetSimple CMS</li><li>Thingammablog</li></ol><p>Acabei optando pelo Serendipity, que, apesar de muito diferente do Blogger e ainda usando uma interface de base de dados, pelo menos é estável, rápido e usa uma base de dados que pode ser transportada (sqlite). Isso em tese me permitirá configurar o blogue em meu computador e depois fazer o upload para um servidor.</p><p>Terminou o semestre, agora é aguardar os desafios do próximo. No plano pessoal eu continuo em busca dos meus históricos 85 kg, perdidos há tantos anos. Chega de acumular pânceps.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-61606466934923623572013-06-23T00:41:00.001-03:002013-06-23T00:41:32.887-03:00Popularidade, Plágio e Advogados<p>Quando perdemos a noção de nossos direitos, pode às vezes parecer opressão quando querem nos entregar aquilo que devia ser nosso [sugestão de cena ilustrativa: um faquir se recusando a receber pagamento pela sua apresentação]. Às vezes nos acostumamos tanto a entregar de graça o que nos é tão caro, que chamamos de prostituição quando pensam em pagar-nos. Estas duas frases me vieram à mente a propósito de um texto publicado hoje no <a href="http://www.baciadasalmas.com/2013/punido-pela-distincao-como-ser-popular-demais-me-impediu-de-ser-publicado-pela-amazon/" target="_blank">Bacia das Almas</a> pelo <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/114370744500936714403" target="_blank">+Paulo Brabo</a>.</p><p>O autor está perplexo porque recebeu uma resposta curta e grossa da Amazon a respeito de sua tentativa de publicar na <a href="https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&sqi=2&ved=0CEkQFjAB&url=http%3A%2F%2Fwww.amazon.com%2FKindle-Store%2Fb%3Fie%3DUTF8%26node%3D133140011&ei=AlPGUdbQM4jR0wHzlIGwCQ&usg=AFQjCNHiuN1zNBtErH1f6z3zAJffY0BQag&sig2=Dpi_cqBGwuXJER1I2VdxuA" rel="nofollow" target="_blank">Kindle Store</a> um livro contendo artigos de seu blogue. O teor das observações feitas pelo Paulo mostra o quanto nós, escritores nos acostumamos com a falta de decência com que nossos leitores nos tratam, a ponto de considerarmos certo aquilo que é errado, e vice versa.</p><p>Se bem entendi a arenga, Paulo possui um blogue desde 2004, no qual publica seus textos, da mesma forma que eu, que estou na internet mais ou menos desde a mesma época. Somente agora, em 2013, nove anos depois, resolveu publicar na Kindle Store alguns dos textos do blogue. A Amazon os rejeitou. Segundo os termos e condições do serviço da Kindle Store, que podem ser consultados <a href="https://kdp.amazon.com/self-publishing/help?topicId=APILE934L348N" rel="nofollow" target="_blank">aqui</a>, a Amazon publica o que quer, quando quer (traduzido por mim):</p><blockquote><a name='more'></a>Reservamo-nos o direito de determinar que conteúdo aceitamos e distribuímos por meio do Programa segundo nossos próprios critérios. Se requisitarmos que nos forneça informações relacionadas aos seus livros digitais, tais como informações que confirmem que você tem todos os direitos necessários para permitir-nos a distribuição do livro digital, você nos providenciará imediatamente a informação requerida, e você reafirma e garante que toda e qualquer informação ou documentação que nos forneça em resposta a tal requerimento será atualizada, completa e exata. Você nos autoriza, diretamente ou por intermédio de terceiros, a fazer quaisquer investigações que consideremos apropriadas para verificar os seus direitos e permitir nossa distribuição dos livros digitais e a exatidão das informações ou documentação que nos forneça a respeito de tais direitos.</blockquote><p>Curta e grossa, a cláusula do contrato não poderia ser mais clara. Considerando, também, o modelo de negócio da Amazon em relação ao Kindle, ela não poderia ser mais <b>justa.</b> Expliquemos: A Amazon se reserva o direito de não publicar o que não lhe interessar e autor não discutirá isso. Se ela desconfiar que o autor não está autorizado a ceder-lhe os direitos da obra, caberá ao autor provar que os detém e, no caso de a Amazon fazer alguma investigação sobre os direitos autorais da obra, o autor admite que ela tem esse direito. Estas cláusulas servem para evitar que gênios ofendidos por recusas processem a Amazon por “perdas e danos” referentes à não publicação de suas obras-primas imortais e destinadas a mudar o destino da literatura ocidental ou da própria humanidade. Mas servem também para permitir que a Kindle Store atue objetivamente como uma editora, ainda que em um nível menor de exigência: caso exista da parte da Amazon a mais remota dúvida de que o livro que tento publicar seja meu mesmo, ou que eu retenha os direitos sobre ele, não há nada que eu possa fazer contra uma decisão de não publicá-lo, m<i>esmo que eu seja totalmente inocente. </i>A Amazon se baseia no salutar princípio de que não basta que a mulher de César seja honesta, mas que <i>pareça </i>honesta.</p><p>Pois o Paulo recebeu da Amazon uma comunicação de que o seu livro estava livremente (“freely”) disponível na internet e que a Amazon não estava plenamente convencida de que ele detinha os direitos <i>exclusivos</i> de publicação. Notaram a ênfase que dei à citação feita pelo Paulo? Ele não prestou muita atenção a esta palavra.</p><p>Em vários momentos, os termos do serviço do Kindle mencionam a necessidade de direitos exclusivos. O autor não precisa ceder os direitos exclusivamente à Amazon, mas precisa provar que ele, autor, é o único que detém os direitos de distribuição de sua obra. E por que isso? Simples: porque se alguém piratear o meu Kindle ebook, eu só posso exigir sua remoção se eu for o único autorizado a licenciá-lo. Se eu, mesmo sendo autor de uma obra, a pus em domínio público, isto quer dizer que qualquer pessoa que detenha uma cópia pode distribuí-la e eu não posso reclamar. Pior: não se pode impedir que outras pessoas produzam cópias inferiores do mesmo conteúdo e a tentem vender através da Kindle Store. Se algo assim ocorresse, se criaria uma situação obscura, que poderia envolver a Amazon em um processo judicial por infração de direito autoral.</p><p>A Amazon também disse ao Paulo que esse tipo de material causa uma experiência desagradável ao leitor — e isso é verdade. Quando se trata de comprar uma obra, o leitor espera que somente versões autorizadas estejam disponíveis. Também acredito que não haja experiência mais desagradável do que desembolsar uma grana para comprar um e-book e depois descobrir que seu texto está disponível num site de <i>downloads</i>.</p><p>Você só pode ceder aquilo que controla. Ceder os direitos sobre algo que não controlo é como vender ar para que engarrafem. A Amazon não deseja comprar ar.</p><p>O que, então, aconteceu ao Paulo, segundo suas próprias palavras?</p><blockquote>Na opinião da Amazon, não tenho como provar os direitos <i>exclusivos</i> de publicação do meu novo livro precisamente porque é tão fácil demonstrar que sou o autor: porque tratam-se de textos publicados originalmente no meu site e que foram desde então reproduzidos em outras páginas da web, em blogs e nas mídias sociais.</blockquote><p>Pode parecer uma postagem do Capitão Óbvio, mas o autor se sentiu surpreendido pela constatação da Amazon. Obviamente a Amazon não desconfia que ele esteja plagiando alguém, ela desconfia que ele não detenha mais o controle dos direitos de copyright de sua obra. Para entender essa desconfiança é preciso dar uma lidinha em textos de Direito Autoral para entender que este, de fato, inclui dois direitos diferentes (por isso falamos em “direitoS autoraIS”):</p><ol><li>Direito moral — que é o direito de ser reconhecido como autor da obra;</li><li>Direito patrimonial — que é o direito de controlar a distribuição da obra.</li></ol><p>Segundo a Convenção de Berna, à qual tanto Estados Unidos quanto Brasil são partes, o direito moral é inalienável (o que significa, em tese, que um <i>ghost-writer </i>pode exigir ser reconhecido como co-autor das obras que escreve, mesmo que as escreva mediante pagamento). Então, quando falamos em cessão de direitos, estamos falando, logicamente, do <i>copyright. </i>A Amazon desconfia, dada a proliferação de cópias da obra do Paulo na internet e redes sociais, que ele não detenha mais o <i>copyright</i> de sua obra. Como isso poderia ter acontecido?</p><p>Ao contrário do que muita gente pensa, a presença da notícia de <i>copyright</i> associada à obra não é essencial para que o direito seja reconhecido. Se fosse assim seria complicado garantir o direito autoral sobre pinturas ou fotografias. Pelo contrário, na ausência de qualquer notícia de licenciamento, pressupõe-se a licença mais restritiva, que é o controle total de <i>copyright</i> pelo autor. Assim reza a Convenção de Berna.</p><p>Mas nas redes sociais e nos blogues nós, autores, na ânsia de difundirmos nossa obra, fazemos tolices praticamente o tempo todo. Basta um encaminhamento de e-mail no qual incluamos uma frase como “compartilhem aí” ou “para todo mundo ler” e zás! Acabamos de destinar nossa obra ao domínio público se alguém puder provar materialmente que nós realmente escrevemos isso (pode ser que no Brasil não seja assim, mas nos EUA, onde se localiza a Amazon, lá é).</p><p>Já ouviu falar em “dissonância cognitiva”? É um fenômeno psicológico que nos faz desconsiderar certas informações, normalmente sem que nos demos conta, de forma a acomodar a realidade à nossa preconcepção da realidade. Paulo é um caso de dissonância cognitiva muito fácil de demonstrar. Você lembra da palavra que eu destaquei lá em cima, na primeira citação? Se não lembra, volte e releia o começo desse artigo. Foi, voltou? Beleza, continuemos. Eis como o autor explica o funcionamento da Kindle Store:</p><blockquote>Na KDP qualquer um pode publicar um livro eletrônico e receber os royalties pela venda: <i>a única exigência é que você detenha os direitos de publicação eletrônica dos seus textos</i>, de modo a cedê-los contratualmente para a Amazon. Querendo dizer: <i>devem ser textos originais e você não pode ter cedido a ninguém os direitos de publicação (tendo já assinado um contrato com uma outra editora, por exemplo).</i></blockquote><p>Na primeira citação o Paulo retira a palavra “exclusivos” que estava na resposta dada pela Amazon, e com isso torna absurda a recusa apresentada por ela. A simples ausência desta palavra muda totalmente o contexto. Claro que o Paulo tem direitos de publicação eletrônica de seus textos, <i>isso a Amazon não duvida, </i>o que ela quer saber é se ele é a única pessoa que detém tais direitos pois, na melhor das hipóteses, ela teria que entrar em acordo com todos os detentores de direitos sobre uma obra. Pois bem, a Amazon desconfia que, dada a proliferação de sua obra na Internet, o Paulo tenha, inadvertida ou propositalmente, concedido direitos de distribuição a terceiros. Como ela não tem (presentemente) nenhuma informação sobre se houve tal concessão e que direitos foram concedidos, é bastante razoável que ela sinta cheiro de confusão e ponha um pé atrás.</p><p>O segundo erro que o Paulo comete nesta citação acima é empregar uma definição limitada do que seja “publicação”. Ele entende como “cessão de direitos de publicação” a assinatura de um contrato com outra editora. Não é isso que diz a lei de direitos autorais, em seu artigo 5º, inciso I:</p><blockquote><tt>Publicação: o oferecimento de obra literária, artística ou científica ao conhecimento do público, com o consentimento do autor, ou de qualquer outro titular de direito do autor, por qualquer forma ou processo.</tt></blockquote><p>Ocorre que o próprio autor admite que: <q>Porém, sendo uma compilação dos meus textos mais populares, já haviam sido republicados (na maioria dos casos por pura simpatia) em uma<i> infinidade de lugares sobre os quais não tenho controle</i>.</q> Esse é o vespeiro no qual a Amazon não quer enfiar o dedo. A republicação, mesmo que seja por “pura simpatia”, é uma “publicação” e uma autorização, mesmo que informal, é uma autorização, pois o autor, sendo o único detentor original dos direitos patrimoniais de sua obra, pode dispor deles como bem entender. Se o próprio autor admite que não tem mais o controle do direito de distribuição (<i>copyright</i>) de sua obra, como ele pode pretender cedê-la à Kindle Store para que seja vendida?</p><p>O corolário deste raciocínio,O corolário do segundo item é que a Amazon concluiu (e na minha opinião ela <b>tem razão</b>) que o Paulo pretende se utilizar gratuitamente da estrutura da Amazon para divulgar o livro de forma <b>indevida</b>. Sim, indevida, pois pretende ceder à Amazon direitos exclusivos sobre uma obra que já foi "roubartilhada" com o seu beneplácito e sobre a qual ninguém tem mais nenhum controle. Você está entregando ar para a Amazon engarrafar e vender. Não me admira que tenham sido rudes com você, você mereceu.</p><p>O ponto final desta argumentação nos traz de volta ao princípio, sobre a sensação de que a remuneração é uma forma de prostituição, esse pensamento que acomete a muitos de nós, jovens autores. Paulo considera uma “homenagem” e uma demonstração de “simpatia” que desconhecidos republiquem textos de seu blogue, mesmo <i>sem nenhum controle. </i>Palavras do próprio Paulo:</p><blockquote>O motivo pelo qual meu conteúdo está disponível em outros sites que não o meu, poderia na verdade contar em meu favor: porque <i>algumas pessoas</i>, incrivelmente, <i>curtem o que escrevo</i>. Aqui no Brasil <i>as pessoas tendem a entender que republicando um texto nos seus próprios sites estão fornecendo ao autor o seu endosso pessoal</i>; nos Estados Unidos, terra natal da Amazon, essa prática é universalmente tida e execrada como “stealing content”: roubo de conteúdo.</blockquote><p>Ocorre que neste ponto, como em muitos outros, os americanos estão mais cobertos de razão do que um peixe, de escamas. Eu posso não admirar integralmente os valores da cultura americana e detestar a política externa de seus governos, mas jamais poderia descartar em bloco os princípios, práticas e valores que permitiram aos Estados Unidos se tornarem o que se tornaram. E neste ponto, <i>eles têm razão.</i></p><p>Não existe nenhuma homenagem em pegar um texto de meu blogue e republicar no seu, você pode até pedir permissão e pode até obter, mas a republicação é, sim, roubo de conteúdo. Essa história de endosso pessoal é balela: trata-se de gente que não tem talento para produzir conteúdo próprio, ou não tem disciplina para tal, e que enche um blogue com texto retirado de outros blogues e que, com isso, ganha para si um relevo e uma remuneração às custas da obra alheia.</p><p>Blogueiro honesto não republica postagem alheia, ele comenta sobre ela e deixa um link. Assim, os seus seguidores, caso fiquem interessados, visitarão o blogue original, renderão AdSense ao autor e o recompensarão, mesmo que somente em <i>hits</i>, pelo seu trabalho.</p><p>Quando um blogueiro republica a postagem alheia, <i>mesmo com autorização e mesmo deixando link, </i>ele está roubando do autor original a visibilidade que ele deveria ter em seu próprio blogue. E como existem blogues e portais na blogosfera brasileira que se criam e se tornam famosos sem ter ninguém lá que escreva! Existem e atraem visitas vampirizando conteúdo alheio, muitas vezes sem deixar nem mesmo o link de crédito. E os mantenedores desses blogues, cheios de empáfia do alto das centenas de milhares de visitas que recebem, ainda respondem com malcriação quando um autor lhes aborda sobre o caso. Esperam que o autor considere um favor que lhe roubem sua luz.</p><p>O Paulo, seja por que motivos forem, internalizou esta submissão. Ele se considera homenageado quando o seu texto se torna conhecido mesmo que muitos leitores nunca cheguem a saber de onde o texto saiu. Ele se julga remunerado pela “simpatia” dos que republicam seu conteúdo, mesmo que os blogues copiões ganhem mais visibilidade e AdSense do que o seu. Talvez, agora, por causa disso que aconteceu, ele comece a questionar que tipo de homenagem é essa que lhe prestam quando o copiam, e que tipo de simpatia é essa que tira vantagem de seu trabalho. Você não permite (ou pelo menos não gosta) que um desconhecido no bar petisque uma batatinha de sua porção ou beba um pouco da sua cerveja, por que deveria permitir que desconhecidos compartilhem seus textos sem nem mesmo a educação de um pedido de licença? E por que considerar normal que outros blogues e sites se abasteçam de conteúdo copiado de blogues e sites menos conhecidos?</p><p>Por isso eu digo que eu não sou o Paulo. Eu não me sinto homenageado por isso. Se você quer me homenagear, faça postagens sobre minhas obras, seja falando bem ou descendo a lenha. Eu me sinto mais homenageado por <a href="http://esooutroblogue.wordpress.com/2010/09/23/solarium-2-lido-e-comentado/" target="_blank">isto</a> do que por <a href="http://pandora.jor.br/2010/01/12/boris-e-os-lixeiros/" target="_blank">isto</a>. Eu até permito que o meu conteúdo seja reproduzido, mas certamente prefiro que ele seja comentado e linkado.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-76377351610164134792013-06-18T01:03:00.001-03:002013-06-23T00:47:11.062-03:00Férias do BlogueEstou de férias do blogue e das redes sociais, dedicando-me a terminar alguns romances, inclusive dois que a <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/101276904349738204067" target="_blank">+Bia Machado</a> jurou que publicaria se eu os terminasse.<br />
<br />
Também estou tentando digerir alguns dos últimos acontecimentos da política, mas ainda não estou aceitando o qualificativo de oráculo, ainda que alguns certamente estejam tentados a me concedê-lo.<br />
<br />
Atualizado em 23/06: vocês devem ter reparado que publiquei hoje. As férias continuam, não esperem atualizações frequentes antes de agosto, mas pode pintar a necessidade de dizer algo subitamente.José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-23241162437630907082013-06-16T09:34:00.002-03:002013-06-17T00:48:04.049-03:00O Preço da Passagem [3]<p>Não percebi quantos dias passei naquele lugar. Dizem-me que foram cinco. Nos primeiros dois ou três o homem do quepe tentou extrair de mim alguma informação sobre as pessoas com quem estivesse envolvido. Mas de alguma forma, segundo consta dos relatórios a que hoje tenho acesso, graças ao <em> habeas data</em>, eu apenas circulava em torno da ideia de ter entrado em algum barco em companhia da falecida Jurema, de ter saído sozinho e a deixado lá. Assinado um tal Tenente Cavalcanti.</p><p>Os meus companheiros de partido, anos mais tarde, me felicitariam por ter sido tão forte, ter aguentado a tortura sem revelar nenhum nome. Porque, de fato, antes do acidente, eu sabia muitas coisas e conhecia muitos nomes. Depois, não mais. Era como se minha vida anterior não existisse. Dizem que foi a tortura que me causou esta amnésia, talvez tenha sido outra coisa.</p><p>As marcas no meu corpo não evidenciam nenhuma excessiva violência, são poucas as cicatrizes e não sei quais delas resultaram da tortura e quais, do acidente. Os relatórios e o testemunho de minha família dão conta de que saí da delegacia direto para casa, o que provavelmente signica que não fui submetido a nada sério que exigisse convalescença. Considerando que muitos saíam em caixões lacrados ou nunca saíam, até que tive sorte. Mas, sorte é palavra que prefiro não usar para mais nada na vida.</p><p><a name='more'></a><br />
A única lembrança que tenho dos dias em que estive com o Tenente Cavalcanti naquele escuro cubículo de algum órgão da Aeronáutica, além do diálogo inicial, é uma cena na qual ela se aproxima de mim, com as mãos ensangüentadas, dizendo:</p><p>— Continuo dizendo, rapaz. Você é um cabra de sorte. Enquanto eu tava lá cuidando do alemãozinho safado chegou esse relatório do DOPS. Ou alguém lá gosta de você ou você é só um imbecil que fugiu da polícia para não ser pego bolinando moça de família.</p><p>O tal relatório está anexado ao meu dossiê. Lá diz que não havia nenhum envolvimento meu com organizações de esquerda — o que é mentira. O policial rodoviário, em seu depoimento, dissera que nos perseguira só por suspeitar que eu fosse muito jovem para dirigir, o que pode ser verdade. E eu só fora parar diante do Tenente Cavalcanti porque o meu nome seria o de um conhecido líder de guerrilha urbana, o que também era mentira. De forma que não pesava contra mim nenhuma suspeita concreta, apenas mal entendidos. De fato eu estivera por tão pouco tempo no movimento, segundo os companheiros de partido. Isto, claro, não impediria que o Tenente Cavalcanti arrancasse meus olhos e me fizesse comê-los, se quisesse, e muita gente padeceu longamente por suspeitas bem mais vagas que essas. Mas era uma época em que ele certamente tinha muito “trabalho” a fazer e acabei tendo a sorte de ser deixado de lado. Ou, talvez, alguém lá no DOPS realmente gostasse de mim.</p><p>Minha mãe me recebeu como ao filho pródigo. Vivi sob sua proteção os anos mais terríveis da ditadura. Não sei se tive juventude, não sei o que fiz de minha vida naqueles anos. É como se uma imensa amnésia alcoólica tivesse apagado tudo de meu cérebro. Meus parentes não me respondem nunca quando lhes pergunto como estava, em que pensava, o que dizia. Fecham o cenho, desconversam. Sei que minhas lembranças só retornam a partir de 26 de setembro de 1984. Eu tinha, então, 37 anos e acordei em uma bonita manhã de sol, ouvindo o passo do relógio, bem-te-vis cantando no jardim. Mais ou menos como um paciente que renasce de um coma.</p><p>Não havia ninguém comigo a não ser uma prima gorda e de rosto espinhento que me sorria. Prima Maria das Graças fora quem, por alguma razão, reduzira as doses de meus remédios. Cuidara de mim todos aqueles anos, dizem-me que até deixou uma faculdade para me amparar durante a doença de meus pais. Não sei se por conformismo ou para exercitar uma gratidão que todos me diziam que eu devia ter, afeiçoei-me a ela e ao seu rosto redondo. </p><p>Acabamos nos casando, para sua grande, imensa, irrefreada felicidade. Ela logo tratou logo de engravidar e ter duas crianças lindas, felizmente pouco parecidas com ela, a quem eu amei de uma forma distante e imprecisa. Tudo em minha vida parecia mortiço, pálido, outonal — não conseguia amar nem mesmo aos meus filhos. Havia alguma coisa de que eu lembrava mal, alguma coisa que me fazia ter uma melancolia denitiva.</p><p>Meu despertar acontecera apenas porque prima Maria das Graças, sem a fiscalização de meus falecidos pais, deixou-me sem os remédios que eu andara tomando por anos e que me mantinham seguro. Oh, foi no dia do velório deles que acordei. De que foi mesmo que morreram? Ah, sim, um acidente de trânsito besta desses que acontecem. Ou teria sido outra coisa. Tento pensar nisso, mas minha mente é fugidia sobre quase tudo agora, exceto sobre certos detalhes que eu gostaria de esquecer. Ela diz que o fez para que eu pudesse velar-lhes, mas alguns parentes, maldosamente, dizem que ela me queria para marido, coisa que aos seus trinta e cinco anos e sem beleza notável, ela não tinha mais esperanças de conseguir, a não ser que fosse um jovem louco e carente.</p><p>Por ela, apossei-me de minha herança de filho único e, mesmo vacilante de memória, busquei uma vida normal. Varri da mente as imagens leitosas de um passado que parecia outra encarnação, mudei de cidade, aprendi uma prossão para passar o tempo enquanto ela, de forma misteriosa, fazia multiplicar minha herança em bens inesperados (qual faculdade mesmo ela cursara? Economia talvez, ou Ciências Contábeis). Para facilitar o meu desligamento dos traumas do passado eu me mudei para Minas Gerais, para bem longe do mar, que nunca mais vi. </p><p>Por alguns anos a lembrança de Jurema me abandonou. Vivi melancólicos dias de quase felicidade, porque o esquecimento é uma forma de felicidade. Tivemos nossos filhos aqui. Parecia que eu havia achado um caminho para viver dignamente os dias que tinha de resto na vida. Então você apareceu.</p><p>— Não gostou de me rever, camarada Sanches. Depois de todos os maus pedaços por que passamos, foi um milagre termos vivido para ter esse dia.</p><p>— Jovino, você não imagina o mal que me causou!</p><p>— O que lhe fiz, camarada Sanches?</p><p>— Por favor, não me chame por meu nome de guerra. Ele é parte de uma dor que eu gostaria muito que tivesse passado.</p><p>— Tudo bem, Sérgio. Eu, eu entendo. Ouvi contarem o que lhe aconteceu. Eu realmente não devia ter vindo aqui, reabrir as antigas feridas. Eu só achei que, talvez, pudesse reencontra em você o meu velho amigo dos tempos de escola. E Deus sabe como ando precisando de amigos. Mas, tudo bem, como disse, eu entendo sua dor. Vou me arrastar com a minha para outras bandas.</p><p>— Jovino, por favor, agora que você já está aqui, não há mais motivo para ir embora. De qualquer forma, eu não vou conseguir mais esquecer as coisas que você me fez lembrar espontaneamente.</p><p>— Cara, você ficou dopado por quase dezessete anos. Não me admira que não lembre nada do que lhe passou. Mas você é um herói, Sérgio. Eu venho aqui em nome do partido lhe dizer isso. Nós reconhecemos o seu heroísmo, nós entramos com um processo contra a União por reparações aos nossos antigos filiados. Você entre eles. Venho aqui, em companhia de nosso advogado, para colher a sua assinatura para dar mais peso à nossa reivindicação. Não sei se você sabe, Sérgio, mas você é uma lenda viva para o Partido Socialista Revolucionário.</p><p>— Não me fale em lendas, Jovino, quando você usa essa palavra eu me sinto como se alguma coisa tivesse sido fisgada no abismo.</p><p>— Mas, você não se lembrava mesmo de nada? Nada?</p><p>— Vagamente. Mas quando eu o vi descer do carro e reconheci o emblema do partido em sua lapela eu comecei a ter lembranças em borbotões, como se alguém houvesse levantado a tampa do inferno. Só não me lembro do que vivi durante os dezessete anos passados entre 26 de abril de 1967 e 26 de setembro de 1984. A não ser por algumas sombras, vultos, palavras soltas.</p><p>— Sua mãe o mantinha sedado, dizendo que estava louco, porque os milicos queriam te pegar de volta para tentar lhe arrancar uma confissão. Mas sempre que eles chegavam em sua casa você estava estirado na cama, babando e delirando. Então eles acharam que o Tenente Cavalcanti tinha sido duro demais com você logo na primeira vez, e acabaram desistindo, mas curiosamente você não se recuperou. Só em 1984, por alguma razão.</p><p>— Dizem que minha mãe me manteve sedado até que a minha prima, hoje minha mulher, que vinha cuidando de mim na velhice dos meus pais, resolveu tirar todo o remédio.</p><p>— Nossas fontes apuraram uma história diferente, Sérgio. Na verdade, nossas fontes dizem que você nunca tomou remédio algum. Até 1984, quando a sua prima <em>começou</em> a lhe dar uns calmantes naturais e a lhe fazer massagens. Quem lhe disse isso?</p><p>— Parentes seus, fofocas de família. E as investigações judiciais referentes ao processo de sua indenização. Tivemos acesso às suas fichas médicas.</p><p>— Eu não entendo.</p><p>— Fora as cenas de delírio que você citou, certamente fruto de algum soro da verdade usado pelos torturadores, qual a última coisa de que se lembra?</p><p>— Eu dirigia um Aero Willys vermelho, ano 1963, ouvia Beatles no rádio, e estava comigo Jurema.</p><p>— Não sabe o que estava fazendo?</p><p>— Cara, aqui em Minas Gerais, onde ninguém me conhece, procurei esquecer os dezessete malditos anos de minha vida entre 1967 e 1984. Procurei me acostumar com esse buraco negreo em minha memória. Tenho cinquenta anos, mas é como se tivesse trinta e três, a idade de Cristo quando morreu.</p><p>— Vamos, tente puxar da memória. A palavra Tchecoslováquia lhe traz algum significado à mente?</p><p>— Raios! Você... sim! Naquela tarde íamos a Vitória para pegar um carregamento de armas contrabandeadas da Tchecoeslováquia em um navio de bandeira turca. Lembro como se fosse agora! Submetralhadoras para uso em assaltos a banco!</p><p>— Exato, camarada!</p><p>— Com mil diabos, eu era mesmo um subversivo!</p><p>— Bem vindo de volta, Camarada Sanches! Vamos, não precisa chorar de emoção pelo reencontro.</p><p>— Não, não é a emoção do reencontro. Lembrar isso me fez entender que uma parte do meu delírio não era delírio. Jurema! Lembro Jurema com mais definição agora. Ela não era só parte de minhas alucinações! Jurema era a minha... noiva!?</p><p>— Camarada, não quer assinar também a ficha de filiação ao Partido?</p><p>— Por favor, Jovino, saia da minha casa, saia da minha vida, nunca mais apareça. Você não tem ideia do mal que me fez.</p><p>— Do que você está falando, homem?</p><p>— Jurema, Jurema está de volta!</p><p>— Camarada, acho que você está com uma recaída. Isso não faz sentido. Acho que você sabe bem o porquê: Jurema não pode voltar de onde está, ela morreu em 27 de abril de 1967 naquele mesmo acidente.</p><p>— Sim, eu sei que ela morreu, mas mesmo assim ela está de volta. </p><p>— Isso é loucura, Camarada Sanches! Ai, caramba! Sua mulher vai ficar furiosa quando voltar e ver você delirando assim! Vai achar que foi tudo culpa minha, ó merda!</p><p>— Senta aí, Jovino, por favor, senta aí e não vai embora!</p><p>— Agora há pouco você estava praticamente me expulsando!</p><p>— Preciso de você, preciso de companhia, porque Jurema está vindo, para acertas as contas comigo. Durante muito tempo eu estive protegido porque não me lembrava de nada, agora que me lembro é como se ela pudesse me farejar, ela está vindo. Eu sinto, eu sei.</p><p>— Eu vou é embora daqui, chamar um médico para cuidar de você!</p><p>— Não, não vá, Jovino. Não vá, eu não vou sobreviver muito tempo sem ter alguém para manter Jurema afastada de mim.</p><p>— Deixe-o ir, Sérgio!</p><p>— Q-quem diz isso?</p><p>— Camarada, vou buscar socorro, volto já. Não fique aí falando sozinho. Tudo vai ficar bem.</p><p>— Vá se foder, Jovino! Deixa de ser covarde. Eu sei que você confessou sob totura e me implicou, desgraçado! Foi por isso que me prenderam no hospital! Como eu queria não ter assinado essa porra desse requerimento de indenização!</p><p>— Deixe-o ir, Sérgio! </p><p>— Ju-jurema?</p><p>— Você já imaginava que eu apareceria. Muito bem. Consegui achar você, depois de todos esses anos. Como pôde me esquecer?</p><p>— Eu esqueci mais do que isso. Foram muitos anos, muitos remédios.</p><p>— Você sabe que isso é mentira, Sérgio. Você mesmo tratou de se proteger, de se envolver, de se embrulhar, de empacotar cada lembrança minha e jogar no porão mais fundo da sua memória. Porque sabia o que tinha feito comigo, e não tinha coragem de enfrentar o seu destino. Mas não esqueci de nada!!! Eu esperei até esse dia para vir!</p><p>— Por que esperou? </p><p>— Ora, por que? Eu não viria para buscar um monte de carne, uma peça de presunto apenas. </p><p>— Eu me lembro agora que a encontrei muitas vezes, com essa mesma roupa preta, esta maquiagem, esses cabelos soltos. Sempre achei que fosse uma dessas garotas roqueiras góticas. Nunca a reconheci. </p><p>— Você estaria mais perto da verdade se o estilo fosse <em>death metal.</em></p><p>— Jovino não a viu.</p><p>— Ele não tem o que é preciso para me ver.</p><p>— Uma sensibilidade especial, algum tipo de dom?</p><p>— Nenhum dom, apenas a experiência de estar estado no Limbo.</p><p>— Eu, eu me lembro vagamente. Uma areia com gosto de cinza, um céu sempre negro, um mar perigoso em que as almas se perdiam, uma oportunidade não aproveitada, um erro terrível, um acidente trágico.</p><p>— Você sabe muito bem que não foi um acidente.</p><p>— O que foi?</p><p>— Foi a coisa mais antinatural que o Inferno já viu em milênios. O suicídio de uma pessoa viva nas águas do Estige Por ter me suicidado eu mereci o inferno, mas por ter me suicidado naquelas águas eu me tornei algo tão bizarro que até os demônios respeitam. Por isso sou livre para vagar pelo mundo, e para vir buscar você.</p><p>— Imagino que devo passar por lá outra vez. Bem, você me permite ao menos que eu deixe algum registro, para que ninguém pense que fui vítima de um crime hediondo, ou que me suicidei. Para que um inocente não seja incriminado, ou a Igreja me negue ritual?</p><p>— Escreve a história de sua vida, se queres. Tenho tempo e estarei contigo enquanto escreves. Mas adianto que as suas preocupações são risíveis e não fazem sentido. Melhor deixar uma nota breve.</p><p>— Está bem, vou escrever: No dia 29 de novembro de 1997, sábado, às 15h30, veio o Anjo da Morte me buscar-me, na pessoa de Jurema, a mulher que por tantos anos eu balbuciei em delírio que a deixara no barco. Eu a vira várias vezes ao longo dos anos, mas não a reconhecera por causa de meu profundo esquecimento, mas também pelas mudanças em sua aparência. Somente quando recuperei a memória de meu passado ela me ouviu e veio até mim, revelando-se quem era. Então vi suas enormes asas de penas negras. Ela veio como aparecia em meus sonhos — talvez seja esse o último desejo que Deus atende aos desgraçados. Veio como uma bela mulher, de vestido negro, olhos tristes e imensos, unhas pintadas de negro. Com longos cabelos negros também, belos de algum modo. Eu me entrego conformado porque nada resta a fazer. Sabendo que encontrarei meu destino, e o alívio de um sofrimento que não me deixa. Me rendo ao meu destino ignorado…”</p><p>— Ignorado não.</p><p>— O que quer dizer, esse “não”?</p><p>— Quando eu me revelar em minha forma real, você saberá quem veio por você, e para onde você vai!</p><h3>Pós-Escrito.</h3><p>Atendendo ao chamado do Sr. Jovino Arantes Silva e de seu advogado, Dr. Eduardo de Oliveira Alves, o Sargento Rodrigues e o Soldado Inocêncio compareceram à residência do artesão e ex ativista político, Sérgio Raimundo de Albuquerque Fernandes, esposo da empresária Maria das Graças Rolim Fernandes. Ao chegar à residência do Sr. Fernandes, os agentes o encontraram caído em decúbito dorsal na varanda de sua casa, vestindo uma bermuda jeans e uma camisa pólo verde e calçado de sandálias de couro do tipo franciscano. Ambas as suas mãos estavam crispadas em torno do pescoço, como se tentassem remover um nó de forca invisível. Seu rosto apresentava uma expressão torturada, cheia do mais profundo pavor, evidenciando a agonia que deve ter padecido em seus últimos instantes de vida. O legista relatou não haver nenhum ferimento visível, marca de estrangulamento, nem qualquer indício de envenenamento. A causa mortis foi dada como enfarte agudo do miocárdio, embora não se tivesse notícia de que o Sr. Fernandes tivesse apresentado anteriormente qualquer enfermidade cardíaca. Sendo sabida a sofrida história de vida do Sr. Fernandes, uma fragilidade do coração, ainda que inaparente, não era de todo inesperada. Durante a autópsia o legista conseguiu, porém, recolher um indício inesperado, que tem desafiado interpretações: a mão direita do Sr. Fernandes continha uma única pena negra, que não se conseguiu identificar a qual ave pertence. Trata-se de uma pena realmente curiosa não apenas por não ter sido ainda identificada por nenhum ornitologista consultado, mas também por um fenômeno curioso que pôde ser observado nos dias seguintes ao fato por todos os que foram à delegacia, onde estava guardada em uma jarra hermética: mesmo na ausência absoluta de qualquer agitação do frasco, e sem a possibilidade de qualquer corrente de ar penetrá-lo, a pena manteve-se continuamente em movimento, reduzindo gradualmente sua agitação até finalmente parar. Na noite seguinte ao seu último estertor, ela desapareceu misteriosamente. A polícia acredita que algum dos ornitologistas subornou um policial para apossar-se dela. Um inquérito está em curso para apurar responsabilidades. Seja quem for que levou a pena, não se deu ao trabalho de levar a jarra e nem sequer de violar o lacre de sua tampa.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-59170268422281173732013-06-14T18:45:00.000-03:002013-06-14T20:28:18.992-03:00O Preço da Passagem [2]<p>Tardou ainda por algum tempo incontável, mas não demasiado que nos desesperasse. Soou uma outra buzina de navio indo para o mesmo lado do primeiro. Ouvimos o já conhecido chapinhar de pás, sentimos o farfalhar das roupas da multidão, talvez ansiosa, acendeu-se a trêmula luz vermelha de uma lanterna e o batel encalhou na areia. Desceu o barqueiro vestido da mesma maneira monacal que os anteriores, o rosto recoberto pela sombra de uma dobra de tecido — e dentro dela um brilho desagradavelmente avermelhado e solitário.</p><p>As pessoas que estavam na praia se dirigiram até ele, automaticamente e sem pressa. Passavam devagar, depositando o que levavam na bolsa que ele tinha à cinta. O barco, como da primeira vez, não parecia reclamar do peso. Ao contemplar a cena, eu sentia temerariamente perto aqueles grupos de olhos que abominara da primeira vez que vira. Eles, mais do que qualquer outra coisa, me comandavam a criar coragem e embarcar, mesmo tendo medo de que também embarcassem.</p><p>Por fim, quando a maioria deixara a praia, cresceu demais o medo dos grupos de olhos e resolvemos subir. Aproximamo-nos do barqueiro, porém, de uma maneira muito irregular, a passos quase claudicantes. Ele abriu uma risada obscena ao ver-nos, mostrando uma leira desagradável de dentes pontiagudos e amarelados. Estendeu a mão para receber o preço e logo nos indicou o caminho, como um porteiro de hotel a um hóspede inesperado.</p><p><a name='more'></a><br />
Subimos. O batel oscilou com nosso peso, fazendo com que vários rostos se voltassem, inclusive o do barqueiro, que teve alguma dificuldade para empurrá-lo de volta para a água. Depois disso, o batel não reclamou mais da nossa presença, deslizou facilmente pela água, impelido pelas remadas desferidas pela força impressionante daqueles braços inumanos. O batel, então, oscilou, indicando que estava solto sobre a líquida extensão daquelas águas infernais.</p><p>Ele remava de forma decidida, como um velho e curtido marinheiro. O batel se movia muito devagar, mas de forma perceptível, sobre a água densa e calma. Tive a curiosidade de provar sua natureza, estendendo a mão em sua direção. O piloto o percebeu, nada disse. Apenas me devotou instantes de atenção. Dentro da escuridão que era sua face, notei o brilho dos dentes anunciando um sorriso mau.</p><p>Levava a mão em direção à água, com as toneladas de receio que a Noite recomendava. Cada milímetro que meu braço avançava era mais pesado que o anterior. Sentia como se estivesse tentando empurrar uma montanha. Não porque estivesse realmente denso ou frio, apenas porque um medo desmedido me assaltava e crescia exponencialmente a cada centímetro de avanço. Já podia pressentir a umidade salobra que eriçava os pelos das costas da mão, mas não podia sentir água alguma. Então, de repente, alguma coisa brilhou no fundo de minha mente — intuição, aviso de um mane familiar, algo assim. Retirei o braço com toda a rapidez que pude imaginar, a tempo de salvá-lo de algo que saltou das profundezas, espalhando gotas geladas pelo ar, alguma coisa que subiu e caiu de volta com um baque surdo e estreito. O barqueiro riu:</p><p>— Não faça isto outra vez, garoto — mas não era preciso que o dissesse. Alguma coisa berrava dentro de mim que não deveria, jamais, de jeito nenhum, tentar aquilo de novo.</p><p>Chegamos a um navio horrorosamente recoberto de líquenes e mofos de toda espécie. Estava fundeado meio adernado e oscilou quando o barco começou a ser içado conosco dentro, mas por fim se equilibrou.</p><p>Estava cheio de uma sorte de gente de olhar estúpido e cansado. Quase todas muito velhas ou de aparência doentia. Passamos por um grupo especialmente catatônico, que pareciam pacientes de uma UTI ainda entubados, e fomos nos alojar junto a um grupo de jovens que conversavam com certa animação, sob uma tênue lâmpada de luz arroxeada que, estranho, da praia não se avistava. Mas mesmo neles pesava o gelo de decadência, o hálito de derrota. Era como estar entre as múmias de um museu de terrores ancestrais.</p><p>— Que diabo de navio é esse? — perguntei, tentando ser engraçado.</p><p>Um dos jovens, talvez o mais feio, mas o único que parecia capaz de sorrir, respondeu:</p><p>— O navio do diabo, ora.</p><p>Tentei rir também, mas não pude. Meu ceticismo estava trôpego, o materialismo histórico deixara de ser uma possibilidade. Olhei à minha volta e uma agonia infinita começou a tomar conta de mim, risadas hediondas ressoavam nos porões da embarcação, mãos duras, ou patas, batiam no convés, provocando-me, fazendo o arrepio da espinha aumentar, eu quase tendo vontade de pular para não sentir tão perto de meus calcanhares aquelas batidas tétricas.</p><p>De onde vinham a noite eterna, a ausência de estrelas, a fantástica tropa de deserdados que se transportava naquela embarcação esculhambada? Como explicar a pantomima melancólica que tantas pessoas desempenhavam, as misteriosas e ferozes coisas que nadavam na água que o navio singrava? Aquela praia larga demais para ser de verdade? Se não fosse mesmo o navio do diabo, era um pesadelo muito real, ou uma dessas experiências que os americanos dizem que acontecem com quem está morrendo.</p><p>— Onde estamos? Fala sério.</p><p>— Estamos na Barca do Inferno, amigo. Eu nunca falei tão sério — atalhou um idoso de barba meio mal-feita e meio mal-arrancada. Vamos na Barca que atravessa o Mar da Morte levando as almas que chegam à Praia do Limbo.</p><p>— Levando para onde?</p><p>O rapazola se divertia, como se nada daquilo o atingisse:</p><p>— Para Dite, a metrópole de Lúcifer. Lá.</p><p>Apontou com o seu dedo magro a montanha onde ocasionalmente relampejava. Assim dita, a frase parecia casual , mas em mim ela ecoava de uma forma muito diferente. Jurema aproximou-se a tempo de ouvi-la perguntar o que significava tudo aquilo. Engoli um pigarro maior que uma bola de tênis. As coisas começavam a criar forma em meu raciocínio. Eu ainda hesitava, sem querer dar uma resposta:</p><p>— Mas, tinha outro barco. Um indo na direção contrária. Quantas linhas percorrem o mar?</p><p>— Ah, sim, claro. A Barca do Purgatório.</p><p>Alguma outra coisa acendeu dentro de mim, com a percepção de que algo estava muito errado, muito mesmo. Jurema interrompeu minhas comiserações objetivamente perguntando o que eu teria acabado por perguntar ao fim da hesitação:</p><p>— Estamos no inferno?</p><p>— Não, não. Ainda não. Isto aqui — o homem fez um gesto amplo, querendo abarcar toda a invisível distância que nos engolfava — é o Limiar, ou como preferirem, o meio-termo entre os mundos. Este é o mar da morte, os que o cruzam não retornam. Lá era o Limbo propriamente dito, o lugar das almas que ainda estão indecisas.</p><p>— Explique essa história direito, estamos mortos?</p><p>— Talvez. Ou talvez não. Enquanto estavam no Limbo certamente ainda estavam vivos, ou só recém-mortos. Mas ainda se podia voltar. Este barco os está levando além do Limiar, que é precisamente Lá — e ao dizê-lo, apontou para um trecho de mar à frente onde brilhava palidamente um de fogo-de-santelmo.</p><p>— Quero voltar! — gritou Jurema.</p><p>— Eu também, Jurema, mas como?</p><p>— Vocês não vão voltar! — gargalhou o jovem feioso, cuja face, àquela luz tão desbotada, se revelava nalmente, dotada de uma estranheza que eu não sabia explicar — vocês estão na Barca do Inferno, acabou a linha para vocês!</p><p>— E a outra embarcação? Como faço para entrar nela?</p><p>Um velho vestido como o sacerdote de alguma igreja minoritária — e desconhecida — tomou a palavra e me explicou:</p><p>— Agora não dá mais, já fez a sua escolha. Todos podem entrar de graça na Barca do Purgatório. Só não entram os que sabem ser culpados. Porque sabem que, mesmo indo aos portões do Éden, os seus pesados corações não permitiriam que suas almas subissem aos céus, montadas em borboletas. Aqueles que trazem o peso de uma vida de erros só conseguem entrar nesse barco, feito para suportar o peso de pecados, pagam o peso de seus erros como tarifa e chegam leves ao Inferno, onde passam uma eternidade entre seus semelhantes. Somente no inferno os maus conseguem a paz de espírito, sofrendo a exclusiva companhia de outros como eles, a guerra eterna de cada um contra todos e todos contra cada um, alianças que nunca se mantêm, objetivos que nunca são concluídos pois estão, todos, devotados a destruir, a sabotar, a impedir.</p><p>Em algum lugar dentro mim eu gritava um “puta-que-o-pariu” e lágrimas imateriais escapavam aos borbotões de meus inexistentes olhos. Uma vertigem me fazia enjoar:</p><p>— Preciso sair desse barco!</p><p>— Esqueça isso — repetiu o feioso jovem — desse barco você só sai a nado!</p><p>A lembrança do que ocorrera durante o transbordo no batel me fez entender que esta não seria uma opção: havia algo na água, algo que definitivamente metia medo. Mas Jurema não notara nada do que me acontecera então, distraída em seus pensamentos. Não sei se por desespero ou pela maldosa sugestão daquele cara detestável, ela virou-se e saltou na água tão rápido que não tive tempo de gritar-lhe que não o fizesse.</p><p>Escutei o baque de seu corpo na água, e no silêncio daquela cavernosa escuridão as suas braçadas se ouviram, rápidas. Logo outro som apareceu, maior, mais forte. Alguns indícios de luta, os sons desapareceram, substituídos por outro, um estalo parecido com o de uma toalha molhada agitada no ar. Uma lufada de vento passou, e então apareceu, caindo da profundidade preta que se espalhava sobre nós, uma fantástica criatura alada de corpo vagamente humano trazendo Jurema em seus braços, com algumas marcas de feridas, especialmente um par de pequenas perfurações na altura do pescoço. Estava imóvel, aparentemente sem consciência de si. Foi acomodada pela criatura sobre um rolo de cordas naquele canto do tombadilho — e nenhum dos passageiros ousou aproximar-se dela. Nem eu.</p><p>A visão destes fatos me abateu totalmente. Percebi que era inútil tentar qualquer coisa e me conformei em enfrentar uma eterna e abissal tristeza. As gargalhadas de alguns dos passageiros não soavam como sons de gargantas humanas, mas como maquinações sobrenaturais de seres desprovidos de piedade. E quanto mais olhava para Jurema, menos vontade tinha de qualquer coisa, parecia que já ansiava pelos suplícios futuros.</p><p>O barco se aproximava de uma margem, pouco além do fogo-de-santelmo. Ali brilhava a luz avermelhada de uma cratera de vulcão, iluminando precariamente uma praia de areia negra onde pobres infelizes se exauriam, escravos, em tarefas estúpidas como rolar pedras ou suportar vergastadas. Eu me agarrava à amurada como se fosse meu último elo com a realidade e Jurema, pobrezinha, desesperada, envolvera-se em posição fetal e exprimia-se em convulsões terríveis.</p><p>O rapaz feioso com que conversara, de repente, despiu sua camisa, revelando em suas costas um horrível par de membranosas asas, semelhantes às de um morcego. Da mesma forma outros dos passageiros o fizeram e começaram a bater essas asas pestilentas, como se quisessem voar. Um coro de dezenas de vozes roucas de barítono gargalhou malevolamente e eu vomitei uma refeição que meu corpo comera. Minha cabeça girava como uma piorra e eu não conseguia concentrar o raciocínio em coisa alguma, como se estivessem me drogando, batendo ou me fazendo morrer, sozinho, em um lugar distante e solitário onde ninguém velaria meu cadáver. Quando os seres alados voejaram sobre o barco, perdi os sentidos, percebendo o cheiro de seus corpos.</p><p>Então, de repente, fez-se a luz. Um policial rodoviário massageava meu peito, uma enfermeira punha soro em minhas veias. Vultos de pessoas transitavam em volta, mas eu os enxergava como se fossem folhas de celofane agitadas ao vento, e suas vozes eram como se estivessem além de uma parede. Vomitei de novo, uma enfermeira limpou meu peito. Ergui a cabeça e consegui me ver: estava aparentemente bem. Havia sido removido das ferragens e jazia em uma maca. Tentei mexer os dedos dos pés para certificar-me deles e senti alívio ao perceber sua fricção contra o solado da bota. Sem vísceras à mostra, sem grandes fraturas. Apenas um golpe na cabeça e um corte não muito extenso sobre o peito. Para acidente tão grave, as consequências eram pequenas.</p><p>— Jurema?</p><p>Não ouvi resposta. Tentei mover a cabeça, mas meu pescoço doía demais. O guarda rodoviário terminava de fazer as bandagens em meu peito. Reuni minhas forças, apertei a garganta e tentei gritar. Tudo o que consegui produzir foi um leve sussurro:</p><p>— Jurema?</p><p>O policial me olhou. Trouxe a mão sobre meus olhos e os fechou. Não respondeu. Alguma coisa me foi dada para cheirar.</p><p>Acordei no hospital, amarrado à cama. Um homem de uniforme verde e capacete branco vigiava a porta do quarto. Eu estava sozinho.</p><p>— Jurema?</p><p>O policial ouviu e se aproximou. Era pouco mais velho do que eu, recruta da PE. Sua cabecinha de adolescente desaparecia sob o enorme capacete.</p><p>— O que disse?</p><p>— Jurema?</p><p>— Sua namorada?</p><p>Com apenas o aceno da cabeça, assenti. Ao fazê-lo, uma imensa tristeza me esganava. Ele fez o aceno oposto, me fazendo arregalar os olhos e perder o controle. Então, do fundo do esquecimento gritou a verdade que ainda não percebera e tive de soltá-la:</p><p>— Jurema ficou no barco! Jurema ficou no barco!</p><p>Debati-me, talvez pensando que, ao libertar-me das correias que me prendiam, pudesse de alguma forma minorar o sofrimento que me matava por dentro.</p><p>— Jurema ficou no barco! Jurema ficou no barco!</p><p>O soldado se desesperou também, despreparado para aquela reação tão brusca do homem que fora mandado a guardar. Recuou desajeitado, pôs a cabeça para fora da porta e gritou por ajuda, como um menino assustado:</p><p>— Enfermeira! O subversivo está louco!</p><p>Duas entraram correndo no quarto.</p><p>— Calma, calma! Está tudo bem! Tudo vai se resolver depois que falar com o delegado!</p><p>— Vocês não entendem! Jurema! Jurema ficou no barco!</p><p>— Que Jurema? Que barco? Vocês fugiram da blitz da polícia num carro!</p><p>— Vocês não entendem! Fui eu que levei Jurema para o barco! E ela ficou no barco! Eu saí e ela ficou! Por que foi que eu saí?</p><p>Chorava como nunca chorara na vida. As imagens da praia queimavam meus olhos como ácido e a culpa de ter induzido minha pobre amada a embarcar para o Inferno me davam uma vertigem que não passava. Meu coração batia pesado, o sangue corria tão apertado que eu ouvia o barulho da sua fricção contra as paredes das artérias. Uma enfermeira, a um aceno da outra, pingou algo em meu soro que me fez começar a amolecer. Então as coisas adquiriram tons leitosos, as tintas começaram a vazar pelos limites dos objetos e tudo se misturou como num imenso quadro abstrato, como se tivessem jogado terebintina em uma pintura.</p><p>Acordei de novo, já vestido, em uma sala escura. Estava amarrado a uma cadeira. Diante de mim um homem de bigodes louros. Sobre a mesa o seu quepe: Aeronáutica. Naquele tempo todos sabíamos reconhecer insígnias, uniformes, distintivos.</p><p>— O senhor é um homem de muita sorte, camarada Sérgio Fernandes.</p><p>— Jurema ficou no barco! — foi tudo quanto pude sussurrar.</p><p>— Ora, não seja infantil. Já faz duas semanas que o senhor só fala nessa Jurema. Rapaz, se ajeite, oxente. Ela morreu, infelizmente, mas agora tenha tenência de homem, pare de chorar que eu tenho até vergonha de bater num cabra chorão como você.</p><p>— Mas fui eu quem a pôs no barco! — insisti.</p><p>— Escute aqui, seu caga-n'água! Não tem nenhuma porra de barco na história! É melhor você parar de se fazer de louquinho, eu não tenho remorso de bater em maluco não…</p><p>— Jurema entrou comigo no barco. Só eu saí.</p><p>O louro bigodudo me deu um forte tapa no rosto. Não muito forte, o suficiente para me fazer ver estrelas. Os seguintes foram, aos poucos, ganhando força. Ele sabia progredir em violência com uma calma de sommelier, não desperdiçando o sabor dos momentos.</p><p>— Tome tenência de homem, cabra!</p><p>— Eu só queria que Jurema tivesse saído do barco…</p><p>— O único barco em que vocês estavam era o barco furado da subversão, rapaz. E agora ele afundou. Você está aqui comigo e tenho a missão de saber quem você é e o que estava fazendo naquele carro.</p><p>— Só eu saí, ela ficou. Foi tudo culpa minha.</p><p>— Muito bem, temos um subversivo que admite a culpa… — ele parecia rir, mas era impossível saber o que sentia — Diga-me, Sr. Fernandes. De que exatamente é culpado?</p><p>— Eu levei Jurema para o barco…</p><p>Alguma coisa bateu com tanta força em minha cabeça que eu perdi os sentidos.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-20519598681616677932013-06-13T00:38:00.001-03:002013-06-13T00:40:24.751-03:00Fulano de Tal: Poeta e Escritor<p>Você já deve ter visto antes nas redes sociais: autor semiprofissional ou totalmente amador lança seus livros, lança saite, ou lança palavras na poeira, como eu. Todos procuram um lugar ao sol, mas nem todo mundo tem uma boa assessoria ou uma boa noção do que dizer. O resultado é que esses autores coloquem frequentemente os pés pelas mãos, ou digam bobagens achando que são naturais.</p><p>As bobagens, curiosamente, sempre se repetem. Não há bobagens ditas isoladamente por uma única pessoa. Uma dessas bobagens que eu vejo frequentemente repetida é a expressão “poeta e escritor” (ou vice versa). O que passava pela cabeça de quem concebeu isto pela primeira vez?</p><p>Antes que venham me dizer que existe uma razão de ser para isso, eu preciso seriamente indagar a quem pretenda defender esta discriminação:</p><ol><li>Acaso poetas não são escritores?</li>
<li>Ou a poesia é o único gênero de escrita que precisa ser considerado à parte dos outros?</li>
<li>Alguém que apenas faça poesia não é escritor?</li>
</ol><p>Parece-me que esta expressão é um tipo de ignorância. Se estudada ou espontânea eu não vou tentar adivinhar. Mas é óbvio que ela esconde nuanças diversas. Por exemplo: ela esconde que a maioria dos auto-intitulados “escritores” são, na verdade, “ficcionistas” (autores de obras de ficção). Mas a expressão “poeta e ficcionista” não soa suficientemente informativa a um grande número de pessoas que são ignorantes do sentido da palavra.</p><p>Trata-se de um tipo de redução parecido com o que ocorre em relação aos subgêneros da ficção. Cada vez é mais comum que os jovens autores digam que escreveram “livros”, quando, de fato, escreveram romances, novelas ou noveletas. Como não me passa pela cabeça desses jovens que os gêneros de ficção longa sejam os únicos que mereçam ser qualificados de “livros”, imagino que eles, de fato, desconhecem os nomes dos subgêneros e apenas diferenciam entre um “livro” e um texto que é lido avulsamente (ou pode ser). Ou melhor, a diferença entre postagens de seus blogues e obras publicadas.</p><p>O que se esconde por debaixo destas novas categorias não é uma evolução da linguagem e nem é reflexo de mudanças do fazer literário — porque tais mudanças não se processam em outras línguas. Isso decorre apenas da falta de cultura de nossos escritores. O escritor brasileiro médio (não me refiro aos que chegam às grandes editoras e ao estrelato) é um ignorante, alguém que leu pouquíssimo ou, se leu muito, leu focado em um ou dois gêneros apenas, e gêneros pobres em referências. O escritor brasileiro médio (reitero que me refiro à massa de amadores que sonha) não tem referencial teórico nenhum e ainda acha que isso lhe ajuda a ser original, como se a ignorância fosse um superpoder.</p><p>E essa ignorância faz mal à literatura como um todo, porque perpetra e perpetua distorções, como a de achar que a poesia é “outra coisa” em relação à literatura ou não saber diferenciar gêneros textuais. Esse mal, que é criado e perpetrado pelos autores ignorantes da própria coisa que fazem, acaba respingando no público, que normalmente teria no literato uma referência da própria literatura.</p><p>Em outra época o escritor era tido como “intelectual”, a ponto de a publicação de livros valer como título de pós-graduação. Mas se o “intelectual” é ignorante (outro ser da estranha fauna brasileira a que se referia o Tim Maia) ele não pode senão reforçar a ignorância de quem o lê, e o resultado é o fechamento cada vez maior dos espaços para o conhecimento. Chega-se ao ponto em que noções foram esquecidas, palavras foram abandonadas, técnicas foram perdidas e, acima de tudo, o leitor desconhece a referência do bom e do ruim, do certo e do errado. </p><p>Esse é, aliás, o ponto em que estamos.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-25391502884592189762013-06-12T18:41:00.000-03:002013-06-12T18:41:00.181-03:00O Preço da Passagem [1]<p>A última coisa que vi na noite escura de 26 de abril de 1967 foram luzes azuis e vermelhas no retrovisor. “Malditos milicos, nos acharam!” — pensei e acelerei na vã esperança de fugir, mas logo perdi o controle em uma curva fechada da estrada para Araruama. Jurema gritou e se encolheu, o carro atingiu a sebe com um baque e um farfalho, tudo muito rápido, e caímos pela ribanceira. Apenas tive tempo de pensar que muitos anos depois da ditadura talvez nos considerassem mártires estudantis e dessem indenizações a nossas famílias. A ironia disso me fez suportar tudo sorrindo, enquanto o rádio do Aero Willys tocava Beatles rumo ao abismo:<em>She's got a ticket to ri-i-i-de, but she don't care…</em></p><p>Houve um clarão e acordamos em uma praia vazia, numa noite sem lua que parecia a morte. A areia na e seca parecia a de um deserto, não a do litoral norte, e estávamos deitados de costas, como cadáveres em um velório. Quando nos erguemos, não havia nem sinal do carro por perto, nenhum ruído de metal nem brilho de chamas. Apenas o breu espesso, entremeado de suaves golpes de frio. Não havia sombra de estrelas no céu, sequer um movimento do ar que denotasse a frente fria prevista pela meteorologia.</p><p>Não sei como nos enxergávamos. Talvez apenas soubéssemos da presença um do outro pelo calor dos corpos, ou por outra forma oculta de sentido. Eu sabia que Jurema estava lá comigo, mesmo sem delinear sua silhueta contra qualquer plano de fundo.</p><p>Engoli em seco, pigarreei para tentar saber se ainda ouvia. Esperando um eco, um tossido, um espirro, um “oi” gritado no escuro. Alguma coisa que me certicasse de que estava vivo. Nada.</p><p>— Onde estaremos? — perguntei sem esperança de resposta.</p><p><a name='more'></a>Jurema parecia ainda catatônica, recuperando aos poucos os sentidos. Tremia e mexia as mãos mecanicamente enquanto seus olhos prescrutavam no ar denso alguma informação utilizável. O brilho deles, como duas pequenas faíscas isoladas no meio de um toldo uniformemente preto que cobria os meus olhos, indicava alguma tênue luz concentrada em suas retinas e refletida fantasmagoricamente naquela visão: distantes relâmpagos delineavam à direita, muito distante, o contorno escuro de uma montanha ou ilha.</p><p>Aquele silêncio medonho apertava a garganta e o ar pesado dicultava o esforço dos pulmões, ardia nos olhos e rugia nos ouvidos com o vento que começava a soprar, estranhamente morno, de várias direções. O céu estava mais escuro que uma noite de lua nova e aquele vento redemoinhando daquele jeito nos fazia lembrar uma caverna imensa, uma cratera, um porão, uma sepultura.</p><p>Logo Jurema cedeu, começando a chorar. Ouvi-la soluçar me agredia mais do que o meu próprio medo porque, apesar de crenças heterodoxas, ainda estávamos de acordo em muitas coisas, tínhamos entre nós aquele egoísmo burguês, aquela possessividade reacionária a que se chama futilmente de “amor”. Estendi os braços na direção daquelas duas brasas mortiças que brilhavam diante de mim como olhos de fantasmas. Tateei o ar vazio com medo de encontrar coisas terríveis, mas acertei seus ombros, frios e seminus. Apertei-a contra meu corpo, tentando certicar-me de nossa materialidade naquele pesadelo. Ou tentando cruelmente roubar o pouco de calor que ela emitia.</p><p>— Onde foi parar o Aero? — ela perguntou em seguida.</p><p>— Não sei, Juju. Acho que fomos lançados fora. Aliás…</p><p>Justo naquele instante, quando acabara de surgir uma questão capaz de levar-nos a reexões relevantes sobre a situação em que nos encontrávamos, fomos interrompidos pelo primeiro som distinto que ouvíamos desde que acordáramos: um navio. Sinalizou não muito longe da praia, um pouco além de onde ouvíamos a maré, e depois ouvimos alguma coisa bater na água de uma forma que apavorava. Sinalizou o navio uma outra vez, naquele som espectral que cortava o silêncio, violento, alto e vibrante, fazendo esquecer momentaneamente o Aero Willys, nossas próprias vidas e tudo mais que nos preocupasse.</p><p>O som, grave e potente, soou uma terceira vez, “huuuuuuummmmmm”, e umas pancadas metálicas sugeriram uma âncora ou o desativar de algum tipo de motor que não ouvíamos. Como alunos que ficam alertas numa sonolenta manhã de segunda-feira quando ouvem a sirene do intervalo, abandonamos nossas considerações e olhamos o horizonte, ou onde deveria haver um, perdido no negro painel que era tudo o que enxergávamos.</p><p>A primeira novidade que pressentimos foi o som de remos anunciando a chegada de um batel. Vinha alguém sozinho, pois era só de dois remos o marulho que se ouvia. Por fim foi acesa uma luz tênue, mecha de uma lanterna incandescente ou pavio de vela. A cena que vimos, iluminada pela precária luz, pareceu tão inatural que nem tivemos palavras. Tudo era tão desprovido das propriedades típicas das coisas que existem que achei que fosse apenas um sonho, ou um delírio que sofria. O barqueiro vinha envolto em panos escuros, de forma que nem se podia enxergar suas mãos, nem rosto, nem pés. Agia de forma metódica, mas não mecânica, e o seu porte parecia tão assustador que se poderia temer que fosse algum monstro fantástico nadando naquelas águas estígias.</p><p>Mas, apesar de ameaçador, era apenas o piloto de um batel em um mar irreal no qual estávamos, de alguma forma, vivendo um pesadelo. Fosse o que fosse estávamos indefesos no frio e desorientados. Nada tínhamos contra o desconhecido, a não ser ave-marias e salve-rainhas que Jurema começava a desfiar da forma atabalhoada como rezam os desesperados. Muito comunista ela…</p><p>O batel chegou à areia. À luz da lanterna precária percebemos melhor o hábito monacal escuro, de capuz caído sobre a face. Do corpo do ser que assim se vestia, a única parte real que se via era uma enorme e negra barba que voejava, desgrenhada, soprada ao vento daquele lugar. Depôs os remos dentro do casco, desceu, molhando os pés naquela água que não brilhava com a luz que a atingia, e arrastou o batel para a areia. Então ergueu a cabeça, deixando-nos ver brilhando, dentro do negrume mais acentuado oculto sob o capuz, uma solitária cintilação, ligeiramente mais avermelhada do que nossos olhos julgavam confortável.</p><p>O barqueiro então tateou dentro de uma dobra de sua vestimenta e de lá extraiu uma sacola de pano tão ordinário quanto as luvas que lhe ocultavam as mãos e gesticulou imperceptivelmente como se virasse a palma da mão esquerda para cima. Então percebemos que não estávamos sós. </p><p>Por alguma razão não percebêramos ainda nenhuma outra voz, mas naquele momento, tão logo o barqueiro fez o seu gesto, sentimos o estalar como de passos na areia, o ruflar de tecidos ao vento, e logo uma numerosa multidão começou a passar por nós, sem sequer um esbarrão em nossos ombros. Pessoas silenciosas e inodoras, que caminhavam sem pressa, dirigindo-se ao batel sem arrastar os pés no chão, sem olharem em torno, parecendo até que não se moviam, mas apensa deslizavam no ar. E aqueles estalidos de grãos de areia cresciam em nossos ouvidos como se fossem outra coisa.</p><p>Nenhuma das pessoas deram mostra de importar-se conosco ou com o nosso atraso. Nenhuma sequer suspirava, todas estendiam os braços em direção ao barqueiro, como para entregar algo. Não contei quantas foram, mas embarcaram bem mais do que aparentemente o batel exíguo suportaria, e mesmo assim ele não pareceu afundar na água densa de tão escura.</p><p>Logo imaginei que deveria haver mais bateis ocultos na treva, talvez com suas lanternas apagadas, ou talvez a neblina excessiva que adensava aquela escuridão ao nível do mar estivesse me impedindo de ver as outras embarcações. Essas tentativas de racionalização começaram a me cansar, como se os meus sentidos começassem a não valer mais.</p><p>De alguma forma, supus que também deveríamos embarcar. Fosse qual fosse o destino da barca fundeada pouco além, somente nela teríamos respostas sobre nossa situação, coisa que na praia, sozinhos, dificilmente encontraríamos. Jurema não concordou, absolutamente:</p><p>— Sérgio, tenho medo desse barco. Vamos ficar na praia e esperar.</p><p>— Que bobagem, Juju. Prefere ficar sozinha nesta praia estranha, sem saber onde estamos? Venha! O que pode dar errado?</p><p>— Alguma coisa me diz que não devemos embarcar. Vamos ficar mais um pouco na praia. Talvez o dia nasça, talvez algo aconteça.</p><p>— Tudo bem, se não quer ir. Mas ao menos perguntemos ao barqueiro alguma coisa que ajude a entender o que está havendo. Por que o medo?</p><p>Assim dito, Jurema concordou em me acompanhar. Aproximamo-nos com a naturalidade que notáramos nos outros, buscando embarcar. O piloto, no entanto, estendeu seu braço diante de nós, oferecendo uma barreira intransponível como uma cordilheira:</p><p>— Pague o preço — ele disse, com uma voz estranhamente carregada nas consoantes, que tinham o peso de estampidos, e alongada nas vogais, de um tom anasalado como se não conseguisse dividir o fluxo de ar corretamente.</p><p>Compreendi, então, porque os passageiros ao embarcar estendiam as mãos em direção ao piloto, e ficou evidente a função da bolsa que ele segurava na mão esquerda.</p><p>— Qual é o preço? — eu perguntei.</p><p>Ele não respondeu. Dentro das sombras projetada</p><p>s pelo capuz brilhava alguma segunda coisa líquida e sutil. Um cheiro estranho, ardido e resinoso se desprendia de todo ele.</p><p>— Diga-me qual é o preço, ou não poderei pagar.</p><p>— Somente podem embarcar aqueles que têm seu preço.</p><p>E tendo dito isto, voltou-nos as costas e empurrou o barco para a água. Qualquer tentativa de atitude física desmaiou em meus planos quando vi a facilidade com que seus braços empurraram um batel grande o bastante para caber todos que haviam entrado. Era uma criatura quase monstruosa de tão forte. Intimidadora. Talvez monstruosa mesmo. Ou talvez apenas deformada por nossa percepção exaltada, ou alterada.</p><p>O batel entrou no negrume do mar e o som dos remos foi diminuindo até, por fim, ser trocado pelo arranque metálico. Então nossos ouvidos, já treinados conseguiram ouvir um som, não de motor, mas de algo muito diferente, de algo que singrou aquele mar, afastou-se de nós, deixou-nos sós naquela medonha praia, abandonados a coisas que haviam saído de nossas preocupações quando soara a buzina.</p><p>— Acho que vi um brilho metálico lá, refletindo a luz da lanterna. Pode ser um cromado do Aero Willys — observou Jurema, numa tentativa de me chamar de volta à racionalidade. Dei dois passos na direção apontada por Jurema, mas me detive:</p><p>— Não posso ir. Se for, me perco de você.</p><p>— Então vou contigo. Tenho medo desse mar.</p><p>— O que pode haver de maligno no mar, ora bolas! Só se forem tubarões!</p><p>Caminhamos na direção do brilho imaginado por Jurema. Pisando devagar, com o cuidado de testar por sumidouros de areia movediça, buracos, cacos, caranguejos ou coisas piores. Coisas que ferissem, ou que… nem era bom pensar. Suponho que andamos uns dez minutos, lentamente, talvez vencendo mais que duzentos metros. Não encontramos nem carro e nem sinal do fim da praia. Sequer mudança de inclinação, fazendo parecer que era uma praia absolutamente plana, ou ao menos imensamente mais larga do que qualquer das praias no norte do estado do Rio; ou mesmo do Espírito Santo.</p><p>Obviamente não encontrar o Aero Willys foi um problema, um obstáculo intransponível contra o qual a dialética marxista se debatia. Cada passo dado na esperança de trombar com a carcaça de metal, sem encontrar nada, a não ser mais daquela esquisita areia que estalava como cinzas frias quando pisávamos, fazia as esperanças se confundirem mais.</p><p>— Acho que temos que voltar, Sérgio.</p><p>— Sim, sim. Voltar — meu tom de voz, quase rendido, deve ter agido de forma ainda mais depressiva sobre ela. Por muito tempo não a ouvi dizer coisa alguma. Voltamos mais devagar ainda, com a pressa dos que se dirigem para uma tortura.</p><p>Chegamos à praia mais enregelados, tristes e menos informados. Por indefinidas horas tentamos esperar amanhecer, mas não aconteceu isso e nem as nuvens grossas que roubavam as estrelas deram sinal de ceder. Seguiu a noite preta sem lua, o negrume dos céus tornando inútil minha infância de escoteiro: não podia ler as horas nas constelações.</p><p>Em quieto desespero e nervoso silêncio aguardamos quase uma eternidade sentados lá, usando apenas o escasso calor de nossos corpos como defesa contra o frio. Por fim ouvimos outro som de embarcação, esta em direção contrária. Da mesma forma que da vez anterior, ouviu-se o som de remos na água, outro batel que vinha em busca de quem na praia estivesse. Outro bem-vindo transporte até onde encontrar respostas.</p><p>Outra criatura envolta em obscuros mantos o trouxe. Apeou com um murmúrio que era ao mesmo tempo assustador, familiar, respeitoso e melancólico. Um cantarolar que parecia nada dizer em língua alguma, mas apenas evocava lembranças que eu julgava perdidas. Lembranças que certamente Jurema também recordou.</p><p>Bem poucos subiram. O piloto olhou em volta, ergueu a lanterna tão rútila e emitiu um cantochão imemorial em vez de voz, como se convidasse os perdidos a aproximarem-se. Não ousei fazê-lo: de algum modo não queria, ou não podia, seguir com ele. Era evidente já, em algum lugar de meu raciocínio, que se o fizesse seria uma viagem sem volta. Por isso eu me fixei no chão, segurei com força a mão de Jurema, que parecia querer ir.</p><p>Ele nos viu. Sem tirar um pé de dentro do batel ele nos mirou com a escuridão que tinha sobre os ombos, propiciada pelo albornoz que levava.</p><p>— Venham. Não posso esperá-los muito — disse numa voz que parecia a de um coveiro conversando na nave de uma igreja.</p><p>— Não vamos — eu disse — não temos como pagar o preço.</p><p>— É verdade. De fato não têm como. Mas venham. Há os que são, eles mesmos, o preço.</p><p>— Não vamos…</p><p>— Vamos, vamos! — Jurema me interrompeu.</p><p>— Não! — disse-lhe em um cochicho — não me cheira bem essa história de ir sem pagar. Jurema concordou e silenciou. O piloto deu de ombros.</p><p>— Muito bem. Mas se querem meu conselho, não se demorem aqui por muito tempo. Outro de nossos barcos não demora. Até lá, mude de ideia e embarque.</p><p>E assim dizendo, com certa diculdade, empurrou o batel de volta para a água e remou para dentro da escuridão de piche que afogava nossos olhos, apagando a lanterna tão logo afastou-se da praia, como se temesse alguma coisa. Ao longe, novas luminosidades alaranjadas tremulavam no ar, delineavam a montanha que víramos mais cedo.</p><p>Uma nota de apreensão passou por minha mente naquele momento em que o piloto remava fazendo um marulho triste na água silenciosa, afastava-se por aquela escuridão inarredável, murmurando sua cantiga arquetípica, até não mais se ouvir.</p><p>Permanecemos na praia por mais eternas horas, ou minutos. A noite continuava, sem indício de aurora ou sequer a lâmpada de um avião passando. O tempo era frio, uniforme como o ar de um porão fechado, e não havia mais vento, em lugar dele crescera silêncio, mais ou menos como aquele que surge na rua de uma cidadezinha quando acabou de passar a primeira rajada de chuva, brilhou o relâmpago e ainda vai ribombar o trovão.</p><p>A praia começou a se encher de outra gente. De todos os lados chegavam passos secos que soavam na na areia como patas de algum animal de pés peludos. Meus olhos, há tanto tempo acostumados ao escuro, quase podiam vê-los. Não divisei muitos, apenas os mais próximos, mas a multidão que vi era como uma plantação de pequenos brilhos em pares, mas alguns brilhos vinham em trios, outros em grupos, raros eram solitários… Esses me faziam sentir um arrependimento terrível de não ter ido no barco anterior.</p><p>Aqueles que estavam mais perto eram em sua maioria pessoas simples, normais, muito velhas quase todas. Tinham rostos amolecidos pelas pancadas do tempo e não vinham de mãos vazias: carregavam pacotes que continham moedas, pedras, joias, coisas disformes e estranhas também, tudo parecendo pesar muito. Eram tão silenciosos quanto os primeiros, pareciam evitar dolorosamente usar a voz. Eu me sentia feliz que assim fosse: não queria ouvir que tipo de sons viriam das fileiras de trás, daqueles lugares onde via aqueles estranhos alinhamentos de olhos.</p><p>— Está pensando o que estou pensando? — perguntei num cochicho quase inaudível.</p><p>— Tenho medo também — disse Juju.</p><p>— Não é isso. Rero-me às bolsas desses infelizes.</p><p>— O que quer dizer, Sérgio?</p><p>— Vamos expropriar estes burgueses de parte de seu patrimônio e usar para pagar nossa passagem. Assim não precisaremos de abusar de nenhuma benevolência.</p><p>A simples perspectiva de haver algo prático a se fazer reacendeu em Jurema o fogo revolucionário. Já não desfiava mais as ave-marias e salve-rainhas, recuperara o jargão do movimento e pensava em todos os conhecimentos de guerrilha urbana que tinha em mente:</p><p>— Companheiro, boa ideia. Mas não vamos nos separar. Vamos juntos, de mãos dadas, porque tenho cada vez mais medo.</p><p>De mãos dadas, casualmente, como dois namorados, saímos no meio da multidão, como se tivéssemos destino, sempre evitando aproximarmo-nos de onde houvesse qualquer alinhamento de olhos que fosse diferente de um par simétrico. Sempre que algum maço de notas ou saco de moedas aparecia à vista, subtraíamos uma cédula, ou um níquel. Era tão fácil quanto roubar mangas do vizinho. Por fim, saímos de dentro da multidão para contar o resultado da expropriação: dez cédulas ásperas e grandes e seis moedas que não reconhecíamos ao tato. A escuridão nos impedia de saber quanto fora a pilhagem, mas a facilidade de serem números pares facilitou as coisas:</p><p>— Cinco notas e três moedas para cada um?</p><p>— Correto, companheiro — e isto dito, ficamos combinados de pegar o barco seguinte, conforme dissera o segundo barqueiro.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-54811034441928215892013-06-11T15:13:00.000-03:002013-06-11T18:49:19.154-03:00Nova Série: O Preço da Passagem (Introdução e Índice)<p>Em fins de 2008 compartilhei na comunidade literária “Novos Escritores do Brasil” um texto curto intitulado “Ticket to Ride” (infelizmente perdido) no qual eu desenvolvia uma curta história sobre dois (ou quatro) subversivos perseguidos pela polícia nos tempos do regime militar. Este texto, após uma extensa revisão, acabou saindo na coletânea “Sinistro”, da Editora Multifoco, em uma versão condensada que nunca me satisfez plenamente (nada por culpa da editora, apenas percebi tardiamente que o conto precisava de um desenvolvimento mais completo, e que a versão condensada que eu mesmo fizera não conseguia ter a força necessária).</p><p>A condensação que fiz, a pedido do <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/114338490934462755317" target="_blank">+Frodo Oliveira</a>, editor da coletânea, aproveitava o desfecho que eu escrevera para uma versão anterior do conto, e tinha cerca de 30% de texto a menos. Na época eu achei que era uma boa opção, pois eu tinha medo que o texto ficasse ilegível de tão grande (hoje em dia já tem quem fale em “literatura no twitter.com”). Hoje mudei de ideia, e por isso aqui estou restaurando a versão original, imensa e mais complexa.</p><p>Sobre esta complexidade, um dado chamará a atenção do leitor: existem dois desfechos dentro da história, um passado e um presente, e duas técnicas narrativas que se sucedem. Talvez este seja o meu conto mais ousado em termos de concepção estrutural. Tão ousado que deixou de ser conto e virou uma noveleta (termo que eu não conhecia em 2009, época em que o publiquei na dita coletânea).</p><ol><li><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/06/o-preco-da-passagem-1.html">Parte 1</a></li><li><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/06/o-preco-da-passagem-2.html">Parte 2</a></li><li><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/06/o-preco-da-passagem-3.html">Parte 3</a></li></ol>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-41063974231758019502013-06-09T23:23:00.000-03:002013-06-09T23:27:02.195-03:00O Cenário como Elemento Central da Ficção de Clark Ashton-Smith [2]<p>Como vimos <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com.br/2013/06/tem-se-por-inquestionavel-verdade-que.html">anteriormente</a>, caro leitor, em nossa análise do conto <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com.br/2013/04/traducao-paisagem-com-salgueiros-clark.html">A Paisagem com Salgueiros</a>, as obras de Clark Ashton-Smith diferem da maior parte da tradição literária ocidental por colocarem em primeiro plano a construção do cenário, a ponto de o autor frequentemente transformar o próprio cenário em um personagem (como no citado conto). Esta não é uma opção exclusiva sua, mas na época em que escreveu ainda eram poucos os autores que compartilhavam desta escolha. Mesmo nos gêneros fantásticos os autores, em sua ampla maioria, tendiam a dedicar mais tempo a construção dos personagens e seus conflitos. Como também vimos, a ênfase no cenário (no caso de Ashton-Smith, em detrimento dos personagens) não é necessariamente uma marca de boa ou má qualidade, apenas uma característica que merece ser analisada e que, no caso dele, devido a circunstâncias que lhe são muito peculiares, resulta em uma obra <em>sui generis</em>.</p><p>Continuando nossa análise da obra de Ashton-Smith, abordaremos mais especificamente três contos nos quais, a exemplo de A Paisagem com Salgueiros, o cenário é a própria motivação da história, a ponto de esta prescindir de um conflito ou de uma sinopse, rompendo radicalmente com certos concietos muito arraigados da crítica literária moderna, como a jornada do herói. Refiro-me, especificamente, a <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com.br/2010/10/traducao-uma-noite-em-malneant-c-smith.html">Uma Noite em Malnéant</a>, <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/05/traducao-abandonados-em-andromeda-clark.html">Abandonados em Andrômeda</a> e <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/05/traducao-as-abominacoes-de-yondo-clark.html">As Abominações de Yondo</a>). <span class="warning spoilers">Se ainda não os leu, sugiro que o faça agora, pois este artigo contém <em>spoilers</em>.</span></p><p><a name='more'></a>As inclinações artísticas de Ashton-Smith (que se dedicou principalmente à escultura e à pintura durante praticamente a metade de sua vida) explicam a sua obsessão com detalhes e nos ajudam a compreender a riqueza de cores e formas e materiais com que ele faz suas descrições mas não ajudam a entender os motivos pelos quais este detalhismo raramente é estendido ao personagem. Tenho uma teoria para isso, um tanto ousada para alguém que não tem nenhuma formação em psicologia ou crítica literária: o autor estava interessado em descrições de paisagens e lugares para compensar a pobreza de suas experiências sensoriais.</p><p>Como vimos na <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/05/a-ficcao-de-clark-ashton-smith.html">breve biografia</a> que lhe escrevi, com base nos textos da Wikipedia e do <a href="http://www.eldritchdark.com">Eldritch Dark</a> (que, por sua vez, dependem muito reciprocamente um do outro), Ashton-Smith nasceu, viveu e morreu em uma área relativamente restrita nas proximidades da costa da Califórnia, sem jamais deixar o estado, ou mesmo aventurar-se a mais que umas dezenas de quilômetros de Auburn, onde esteve baseado durante quase toda a sua vida. A paisagem domesticada, a falta de contato com culturas estrangeiras (a não ser por meio de livros ou pela interação com os imigrantes) e a relativa falta de acontecimentos dignos de nota em sua biografia nos fazem pensar que Smith concebeu maravilhosos cenários exóticos para vivenciar neles, por meio de seus personagens, ex periências que ele mesmo não poderia vivenciar pessoalmente, dados os recursos parcos com que tinha de viver e a sua dificuldade pessoal para interagir com pessoas (há indícios de que sua excessiva timidez possivelmemte tenha sido relacionada com algum tipo de síndrome cogênere do autismo, como Asperger, ficando descartada a possibilidade de quadros de depressão pelos fatos conhecidos de sua biografia).</p><p>Neste sentido, alguns de seus personagens poderiam ser <em>alter egos</em> seus, e isso de fato ocorre com relativa frequência, não necessariamente de forma restrita às histórias narradas em primeira pessoa. Entre estes personagens, Gaspard du Nord (O Colosso de Ylourgne), Phillip Hastane (A Cidade da Chama Cantante, O Devoto do Mal, Genius Loci, Os Caçadores do Além) e Henry Chaldane (A Prole Abominável) são alguns dos candidatos óbvios. Porém não há evidências de que as histórias exóticas de Smith contenham uma quantidade expressiva de alter egos seus (de fato, na maioria delas não parece haver um persoangem claramente identificável como tal). Este fato sugere que, para além do escapismo, exista outro fator atuante no exotismo, e uma vez mais a chave pode estar em A Paisagem com Salgueiros</p><p>Nesto conto temos um personagem solitário, vinculado a um compromisso familiar (no caso, a educação do irmão menor) que lhe impede de dar curso aos próprios desejos. Tal personagem, o desafortunado mandarim chinês a quem Ashton-Smith chamou de Shih Liang, é o mais perfeito <em>alter ego</em> do autor, pois, em vez de se dedicar às aventuras que o autor não pode viver, ele se dedica exatamente a um tipo de contemplação artística que não difere muito daquela de Ashton-Smith (que, por sua vez, não pôde viver livremente pela necessidade de cuidar de seus idosos e frágeis pais). Shih Liang vive a admirar uma pintura cara, herdada de gerações anteriores. Ashton-Smith não tinha tal pintura para admirar, mas cria em suas histórias um simulacro de paisagens fantásticas que ele podia contemplar da mesma forma que o mandarim. Em algumas destas paisagens ele claramente poderia desejar habitar, mas em sua maioria elas são apenas saudades artificais que são, para o autor, aquilo que a paisagem com salgueiros era para o mandarim chinês.</p><p>Quando passamos a ver os cenários fantásticos da obra de Ashton-Smith com os mesmos olhos com que Shih Liang encarava a sua paisagem com salgueiros, entendemos finalmente porque as descrições do autor são tão profusas e ganham mais relevo do que qualquer desenvolvimento de personagem: não se trata meramente do estabelecimento de um cenário para situar a ação, o cenário não é concebido para ser meramente um pano de fundo, mas é a própria razão de ser da história em si.</p><p>Transpondo esta conclusão para uma história como <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com.br/2010/10/traducao-uma-noite-em-malneant-c-smith.html">Uma Noite em Malnéant</a>, podemos ver como ela explica o desenvolvimento escolhido por Ashton-Smith para todo o texto. Não há nenhuma localização temporal para a história (que, no entanto, evoca de forma tímida um cenário medieval, o que nos remete ao ciclo de Averoigne) e tudo o que sabemos é que o personagem narrador, cujo nome não é nunca revelado, padece de um profundo complexo de culpa pelo suicídio de Mariel, uma jovem com quem estivera envolvido (e cujo título de donzela sugere não ter havido jamais qualquer consumação desse envolvimento afetivo). A partir deste tênue pano de fundo o autor começa a desenvolver uma poderosa descrição de uma metrópole onírica, aparentemente empoçada no tempo e no espaço, eternamente dedicada a velar a falecida Mariel como se fosse uma princesa morta. À parte as possíveis implicações deste cenário funeral com qualquer episódio da biografia do autor (e este aspecto funeral será explorado em outra oportunidade), o todo da história nos sugere a construção de uma obra a ser admirada fixamente. O caráter estático de Malnéant sugere ser uma descrição de um cenário vivamente imaginado por Ashton-Smith (mais tarde, em sua vida, ele passou a se dedicar primordialmente à pintura e à escultura, dando forma mais tangível às fortes imagens mentais que concebia). O nome escolhido, por sua vez, possui várias conotações possíveis, sendo que <<i>néant significa nada em francês. Considerando o parco conhecimento que o autor teve dessa língua, é possível que ele tenha imaginado <em>Malnéant</em> como significando quase nada ou mal nenhum (a tradução exata depende da profundidade do referido conhecimento). A impressão que nos resta ao final do conto é a de total inação, como se nada tivesse realmente acontecido e tudo não passasse de uma breve alucinação do personagem-narrador, consumido pelo remorso. Mas a força da descrição se impõe sobre esta impressão de falta de sentido e o conto acaba por ficar profundamente marcado na mente de quem o lê.</p><p>Um fenômeno semelhante se nota em <a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/05/traducao-as-abominacoes-de-yondo-clark.html">As Abominações de Yondo</a>, o primeiro conto fantástico publicado por Ashton-Smith nas revistas pulp (e por isso dotado de uma significação especial). Parece haver nesse texto uma intenção deliberada de construir um cenário não convencional, imaginando um mundo plano (pois tem uma borda que fica em um dos cantos e que está por isso mais próxima que qualquer outro lugar dos abismos inferiores) e um cenário absolutamente surrealista, onde convivem ruínas de civilizações esquecidas, restos de mares evaporados, criaturas mutantes (algumas possivelmente de origem alienígena) e obras de feitiçaria. No entanto, este cenário não é aproveitado para desenvolver qualquer tipo de conflito visível. Todo o conflito da história se situa fora de Yondo (nome que certamente deriva do arcaico advérbio yonder, que significa distante ou além) e a presença do narrador no deserto é apenas um intervalo de uma trama da qual sabemos muito pouco. Assim, o narrador entra e sai do deserto brevemente, no espaço de um único dia, trombando pelo caminho com uma série de fenômenos inexplicados até finalmente decidir retroceder e acertar suas contas com os Inquisidores de Yig. Por ser um conto produzido ainda no início da carreira de Ashton-Smith como ficcionista, esta obra contém imperfeições gritantes, das quais a mais evidente é a falta de coerência dos fatos em relação ao tempo-espaço, pois o narrador leva quase um dia inteiro penetrando no deserto para depois, no espaço de poucas horas, conseguir retornar ao ponto de partida, estando já cansado e faminto. A incoerência deste retorno é a grande frustração ao final, apesar da beleza das descrições feitas ao longo de todo o texto.</p><p>Mas o ponto mais alto do talento descritivo de Ashton-Smith se encontra mesmo em Abandonados em Andrômeda. Praticamente uma noveleta (por alcançar mais de 50 páginas), esta obra consegue um feito raro no âmbito da ficção curta: a concepção e a realização de todo um cenário alienígena. O segundo planeta de Delta Andrômeda é descrito de forma tão eficiente pelo autor que quase podemos nos imaginar em sua paisagem árida e desolada, habitada por formas de vida surpreendentes e hostis. O feito ainda é mais admirável pelo fato de que a história não se restringe a uma única paisagem, o que já seria em si surpreendente, mas abarca uma sucessão de cenários, que incluem até mesmo um tipo de floresta tropical e uma ilha no meio de um mar seco, sobre a qual existem ruínas de uma misteriosa civilização.</p><p>A história começa dentro de uma espaçonave onde ocorreu uma tentativa de motim, e o duro capitão Volmar decreta que os rebelados serão abandonados (não existe tradução exata em português para o termo marooned, que evoca um ato de pirataria) em um planeta qualquer. A ação transcorrida dentro da espaçonave serve apenas de prólogo para o que se verá a seguir, a partir do momento em que os amotinados; Albert Adams, Chester Deming e James Roverton; são deixados em uma planície desolada no lado noturno de um planeta alienígena sem terem consigo nem armas e nem provisões. É neste momento que Ashton-Smith consegue se ombrear com os grandes nomes da ficção científica, criando uma atmosfera sufocante de suspense que poucos autores são capazes de imaginar. Este é, sem dúvida, o tipo de texto que motivou H. P. Lovecraft a elogiá-lo em O Horror Sobrenatural na Literatura, dizendo que</p><blockquote>Entre os americanos mais jovens, ninguém executa a nota de horror cósmico tão bem quanto o poeta, artista plástico e ficcionista californiano Clark Ashton Smith, cuja escrita, desenhos, pinturas e histórias bizarras são um deleite para os poucos que têm sensibilidade para tal. […] Por sua ousada estranheza demoníaca e a fertilidade de concepção, o Sr. Smith talvez não seja igualado por nenhum outro autor, vivo ou morto.</blockquote><p>Diante da imensidade do terror que assola os três personagens, de quem, aliás, muito pouco se falara além dos nomes, não sobra mais tempo para explorar conflitos entre eles (aliás, é bastante verossímil imaginar que, em tal situação, três pessoas tendessem a agir de forma unida como fazem os protagonistas) ou para que conversem sobre antigas namoradas ou tempos de escola. A ação transcorre em um ritmo alucinante, interrompido apenas pela noite de sono que os protagonistas experimentam entre os pigmeus — e mesmo esta é induzida pela bebida que tomam. Cada um dos cenários é detalhadamente descrito, tornando possível que seja até mesmo traçado por um leitor mais dotado de talento para o desenho.</p><p>Abandonados em Andrômeda é, aliás, um entre muitos dos contos de Smith que adota um desenvolvimento circular, fazendo com que os personagens retornem ao ponto de partida, ainda que modificados pelas experiências vividas. Estrutura semelhante já se nota nos dois outros contos comentados (Yondo e Malnéant), mas se repete em vários outros, traduzidos (<a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/03/traducao-o-demonio-da-flor-clark-ashton.html">O Demônio da Flor</a>) ou não (A Ilha que Não Estava no Mapa, Uma Aventura no Futuro, Uma Mudança de Estrela, As Mulheres Flor e O Colosso de Ylourgne — nesse caso o aspecto cíclico apenas se insere no plano geral da história). Este caráter circular da história serve ainda mais para enfatizar a importância da experiência em si, descrita em minúcias, diminuindo a importância do desfecho, que serve apenas para completar o ciclo.</p><p>Assim, quando os sobreviventes são resgatados pelo arrependido capitão Volmar (cujo arrependimento, aliás, é motivado por razões práticas e não éticas), eles deixam o planeta sem dele levar qualquer memento a não ser as lembranças (e traumas) das experiências nele vividas. Da mesma maneira que o torturado herói das Abominações de Yondo ou o enlutado protagonista de Uma Noite em Malnéant. O que muda é a atitude dos protagonistas em relação a esta falta. Certamente o herói que foge de Yondo fica feliz por nada trazer, os amotinados de Andrômeda talvez futuramente se arrependam de terem desperdiçado a oportunidade de fazer mais estudos científicos e o visitante de Malnénat decerto gostaria de ter trazido algo de lá.</p><p>Em todos os três casos, porém, o cenário em que a história se desenrola é mais importante do que os personagens, e foi certamente concebido muito antes que eles. Prova disso é a possibilidade de reutilizar estes cenários em obras derivadas (algo que, até o momento, só ocorreu com Malnéant, revisitada por outros autores) de uma forma relativamente fácil. Como os cenários não dependem essencialmente dos personagens, é possível colocar outros personagens neles, e assim conceber histórias radicalmente diferentes. Eu, particularmente, gostaria muito de saber mais sobre o segundo planeta do sistema Delta Andromedæ. Quem ousará escrever?</p><br />
José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-34021855306027509682013-06-08T23:45:00.000-03:002013-06-08T23:45:02.086-03:00Parabéns aos Jovens de HojeO planeta levou bilhões de anos para desenvolver vida.<br />
Depois levou mais uns bilhões de anos até produzir mamíferos.<br />
Mais algumas dezenas de milhões de anos para produzir primatas.<br />
Muitas centenas de milhares de anos para produzir hominídeos inteligentes.<br />
Dezenas de milhares de anos para produzir o primeiro instrumento musical.<br />
Muitos séculos para inventar a música polifônica.<br />
Mais alguns séculos para aperfeiçoar uma notação musical eficiente.<br />
Quase três séculos ainda para inventar a primeira forma de gravação sonora, o fonógrafo de rolo.<br />
Levou 10 anos para inventar o disco, mais dez anos para fazê-lo em vinil monoaural.<br />
Nesse meio tempo inventou a fita magnética, que possibilitou a produção em massa.<br />
Levou 26 anos até inventar o Long-Play de 33 rpm.<br />
Levou 20 anos até inventar o som estéreo.<br />
Levou 8 anos para inventar o som quadrifônico.<br />
Levou 6 anos para inventar o Dolby-Surround.<br />
Levou 4 anos para inventar a gravação digital.<br />
Levou 2 anos para inventar o CD.<br />
Levou 7 anos para inventar o arquivo digital de música.<br />
Levou 4 anos para inventar a interface USB.<br />
Levou 6 anos para inventar o pendrive.<br />
<br />
Então os jovens fãs brasileiros de música pop, vendo todo o progresso da humanidade rumo à reprodução sonora fácil, barata e de qualidade, foram inspirados pelas forças das trevas a adquirir e utilizar um equipamento que é a epítome de sua evolução espiritual e cultural:<br />
<br />
<strong>A caixinha de som portátil, monoaural.</strong><br />
<br />
Não sei quem foi o imbecil que teve a ideia de pegar o som horrível dos telefones celulares e transformar num aparelhinho tosco que nem mesmo serve para fazer ligações telefônicas. Mas sei quem são os que estão andando pela rua com essas coisas ridículas que reproduzem o som sem qualquer profundidade.<br />
<br />
A popularização destes aparelhinhos é um sinal dos tempos. Mostra que a nossa juventude ficou para trás em termos de civilização. Não consegue mais acompanhar o mundo. O mundo ficou mais burro, as pessoas leem menos. Ficou mais surdo, a música de hoje não tem nuances. Ficou carregando um trocinho mixuruca que nem consegue reproduzir uma reverberação.<br />
<br />
Meus parabéns aos jovens de hoje, especialmente aos fãs de funk, que são os maiores usuários dessas caixinhas. Chega desse troço chato de evoluir e aprender, melhor voltar aos bons velhos tempos, alguns já estão voltando, e já chegaram a 1920. Estão ouvindo sua “música” em aparelhos que reproduzem um som compatível com aquelas radiolas de madeira que nossos bisavós usavam para ouvir as primeiras estações de rádio do mundo.<br />
<br />
Sintam-se modernos, meninos. E não adianta xingar nem ficar ofendido. Quem te xinga e te ofende é o seu mau gosto.José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-53765350310875048412013-06-03T18:30:00.000-03:002013-06-03T20:44:47.899-03:00A Serpente com Asas<div class="TOC">Dedicado <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/102048567868295207858" target="_blank">+Félix Maranganha</a></div><p>Confesso que tive durante muito tempo uma certa resistência preconceituosa contra a tatuagem. Coisa de marinheiros, de presidiários, de maconheiros, de nefelibatas, de mafiosos japoneses que amputam os próprios dedos. Nada que caiba no quadrado perfeito em que inscrevo minhas opiniões. O tempo, porém, foi me educando mais a respeito do tema e eu fui percebendo que há tatuagens e tatuagens… Algumas eu posso apensa desconsiderar, outras são realmente desprezíveis, algumas eu devo temer e a maioria é simplesmente sem sentido.</p><p>Mas eu comecei a perder meu preconceito graças a Fernanda. Eu tinha vinte e cinco anos de sonho e de sangue e de América do Sul quando ela anoiteceu na minha vida, com seus cabelos longos, seu nariz comprido, seu olhar perdido e seu pescoço grosso entre os ombros. Tinha também uma tatuagem de uma lua crescente no braço direito, justo sobre a marca da vacina da varíola, “para disfarçar que a cicatriz é muito feia”. Eu teria dito que feia era a tatuagem, mas só fui saber dela quando meu juízo já se perdera por Fernanda, e então eu já não acharia feio nada que existisse nela.</p><p><a name='more'></a>Certa vez, era tardinha, tomávamos uma cerveja ao anoitecer de sexta feira, lá no D'Ângelo, quando ouvimos falar do prêmio alto que pagariam na loteria. Ela me atiçou a apostar:</p><p>— Um bilhete só, querido. Exponha-se ao azar de ficar milionário.</p><p>— Ora, Fernanda, ficar rico é muito bom, mas é algo que se deve fazer sem testemunhas.</p><p>— Não se preocupe, é só dizer a todo mundo que o bilhete premiado da cidade não foi o seu.</p><p>Assim, de brincadeira, fomos parar na casa lotérica e eu peguei um volante para marcar seis números aleatórios. Não vale a pena descrever os métodos heterodoxos para escolha das dezenas, mas resultou um palpite que nunca mais esqueci: 11, 13, 31, 43, 45, 54. Feita a aposta, enquanto entrávamos no carro para ir embora jantar em casa, ela me perguntou:</p><p>— Vai conseguir guardar de todo mundo o segredo? Aguenta segurar a notícia por quanto tempo?</p><p>Naquele momento, sem pesar muito o que estava dizendo, eu fiz um comentário leviano:</p><p>— Consigo guardar o segredo por toda uma vida se eu encontrar uma forma de contá-lo para todo mundo, o tempo todo. E poderei contar, se for de uma maneira que ninguém entenda.</p><p>— Tente pichar a confissão em búlgaro no muro de sua casa.</p><p>— Tem que ser algo melhor do que isso, nunca se sabe quando um búlgaro aparecerá nesta cidade. Tenho uma ideia melhor: se ganhar prometo que faço em meu braço a tatuagem de uma cobra com asas.</p><p>Fernanda caiu na gargalhada, aquela gargalhada sem freios que ela tinha e que me assustava, aquele jeito de espojar-se no riso como uma vilã de contos de fada. Vestida de preto e cheia de maquiagem como estava, parecia ainda mais bruxa má.</p><p>Ela nunca acreditou em mim, achava-me careta demais. Meu palpite não foi premiado naquela semana, nem na seguinte. Se ela chegou a contar para alguém a história, mesmo depois de terminarmos, é certo que ninguém mais se lembrava do caso, de forma que eu mesmo não me lembrava dele, a não ser quando repetia a aposta, geralmente nas ocasiões em que o prêmio acumulava. Mas então aconteceu.</p><p>Era de manhã e eu acordara sonolento e preguiçoso. Estava cochilando na rede cochilando quando um vento ainda mais frio soprou da rua, balançando as folhas das árvores. Senti a pele encolher em vão, os músculos repuxaram e os dentes bateram.</p><p>Levantei sobressaltado e fui para dentro de casa preparar-me um café para espantar a sonolência. Sentado à mesa, contemplava alternadamente a paisagem das montanhas, na estreita janela da área de serviço, filtrada pelo vapor que subia do caneco de alumínio em que estava fervendo a água. No vapor começou a se desenhar, lentamente, a figura de um bicho com asas largas, asas de pomba, mas um corpo comprido e saliente, corpo de serpente.</p><p>Esfreguei os olhos e a serpente voadora não estava mais lá. Olhei o relógio e vi que eram apenas dez da manhã. Ainda dava tempo. Tomei aquele café com pressa e pães de queijo, vesti-me e fui ao centro da cidade marcar meu bilhete.</p><p>À noite vi embascado o noticiário da televisão anunciar meus números. Não fora nada tão extraordinário quanto ganhar sozinho um concurso acumulado, ficar rico de ter dezenas de milhões, mas eram 12 respeitáveis pacotes, mais dinheiro do que eu conseguiria carregar.</p><p>Certa vez, de brincadeira, enquanto marcava um bilhete de loteria na presença de uma namorada, eu tinha dito que, se ganhasse, mandaria tatuar no meu braço uma cobra com asas. Ela nunca me perguntou o porquê e nem eu refleti muito sobre, até aquele dia em que vira a sombra de uma serpente alada no vapor da água do café. Devia ter dito a Fernanda que eu queria desmentir que Deus não dá asas a cobra.</p><p>Desliguei a televisão e me enrolei nas cobertas, sem conseguir dormir. Meus olhos estavam arreganhados, vidrados, e enxergavam no escuro fantásticas sombras que voejavam, compridas e ondulantes, pelas paredes e sombras do quarto e do mundo.</p><p>Virei para um lado, puxei a coberta e rolei para o outro lado, puxei e rolei de volta, prendendo-a dos dois lados debaixo do meu corpo, apertando. Ergui os pés, deixei que a ponta sobrasse debaixo dos meus calcanhares. Estava empacotado como um picolé dentro do invólucro. Pernas e braços estendidos, duros, dentro daquele casulo cilíndrico formado pela coberta em torno de meu corpo. De repente tive vontade de erguer novamente as pernas, e de abaixar, e de rolar para o lado, e para o outro, cair da cama, sair do quarto, seguir o mundo, mas não tinha asas.</p><p>Dormi uma noite de sonho inquieto, represando sentimentos contraditórios, querendo morder minha própria língua, que secava no ar enquanto o silêncio da noite ia enchendo os meus ouvidos.</p><p>Por fim, lá pela madrugada velha, compreendi o que devia fazer:</p><p>— Segunda feira, em vez de trabalhar, passo no tatuador e faço essa da promessa.</p><p>E ri, quase engasgando em meu próprio veneno.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-77499063719830095282013-06-02T12:27:00.000-03:002013-06-09T23:47:24.810-03:00O Cenário como Elemento Central da Ficção de Clark Ashton-Smith [1]<p>Tem-se por inquestionável verdade que a concepção dos personagens é o elemento central da literatura de ficção em qualquer gênero. Sem personagens dotados de credibilidade e de motivações a história, por boa que seja, tende a fluir de uma maneira desconexa, de forma que os acontecimentos não apresentam sequencia lógica. Tanto é assim que não é raro que certos personagens adquiram um relevo cultural muito maior do que o das obras em que apareceram originalmente. Exemplos desse fenômeno são Romeu e Julieta, Hamlet, Cyrano de Bergerac, Tartufo, Gargântua e Pantagruel, Lolita, Sherlock Holmes, Bentinho e Capitu, Fausto, Madame Bovary etc. Alguns personagens possuem uma força própria tão intensa que transcende os limites das obras individuais e os traz de volta não só em outras obras do mesmo autor mas até em obras de outros autores.</p><p>A ficção fantástica, de uma forma geral, tem certa dificuldade para construir personagens dotados de força semelhante pois, em sua essência, possui uma outra dinâmica. Enquanto nas histórias realistas o elemento de interesse se encontrará sempre na excentricidade do personagem ou no inusitado de uma ou mais circunstâncias nas quais eles se inserem, na ficção fantástica já existe um tal número de elementos povoando o texto, entre eles a construção do cenário e a concepção da trama, que o desenvolvimento de personagens ricos pode significar uma extensão extraordinária do texto ou, pior, em prejuízo à legibilidade. Diferentemente do autor de ficção realista, que parte de elementos que são conhecidos do leitor, ou sobre os quais poderá se informar com relativa facilidade, o autor de ficção fantástica concebe uma série de elementos que não fazem parte da experiência imediata do leitor e sobre os quais ele, na maioria das vezes, não tem nenhum meio para informar-se. Cabe, então, ao autor de ficção fantástica prover ao leitor a informação necessária para vislumbrar adequadamente estes elementos, sob pena de não conseguir o desejado efeito. São vários os estratagemas empregados pelos autores de ficção fantástica para abreviar a quantidade de informação que é preciso transmitir. </p><p><a name='more'></a>Uma das técnicas para isso é começar a história em um ambiente familiar ao leitor e depois fazer a ruptura com a introdução de elementos fantásticos, sem nunca, porém, perder de vista a relação com o mundo real. Este tipo de história costuma receber a designação (ofensiva e muito imprópria) de “baixa ficção”. O cenário realista fornece ambiente seguro para fazer a construção dos personagens e estabelecer conflitos que podem ou não ser significativos na ambientação fantástica. Exemplos de “baixa ficção” na literatura clássica são <i>Drácula </i>(Bram Stoker), <i>A Guerra dos Mundos </i>(H. G. Wells), <i>Tarzan dos Macacos </i>(Edgar Rice Burroughs), <i>A Sombra Sobre Innsmouth </i>(H. P. Lovecraft) e <i>A Luneta Mágica </i>(Joaquim Manuel de Macedo), <i>A Nova Califórnia </i>(Lima Barreto) e <i>A Casa dos Espíritos </i>(Isabel Allende).</p><p>Quando a história transcorre, no todo ou em na maior parte, em um cenário integralmente fantástico, temos a assim chamada “alta ficção”, na qual a liberdade do autor não encontra limites a não ser os da coerência interna. Exemplos desse tipo de obra são <i>O Senhor dos Anéis </i>(J. R. R. Tolkien), <i>Alice no País das Maravilhas </i>(Lewis Carroll), <i>Fundação </i>(Isaac Asimov), <i>Canções da Terra Distante </i>(Arthur C. Clarke), <i>Viagens de Gulliver </i>(Jonathan Swift) e <i>As Brumas de Avalon </i>(Marion Zimmer Bradley). Este tipo de história costuma ter um fôlego maior (requerendo centenas de páginas ou uma pluralidade de volumes), sendo raramente encontrado na ficção curta (contos, novelas e noveletas). A necessidade de desenvolver um cenário ficcional completo exigirá do autor algumas decisões sobre prioridades na hora de escolher os elementos que desenvolverá, ou terá de escrever milhares de páginas. Nem todo autor está disposto ao desafio de Tolkien… </p><p>Há vários tipos de limitações a que o autor recorre para abreviar o tamanho e complexidade resultantes. A maioria dos autores abrevia a tarefa simplesmente abreviando as descrições do cenário. Assim, mesmo o cenário sendo fantástico, ele acaba sendo parecido com a realidade, e o desvio é apenas o suficiente para o autor não ter de fazer uma pesquisa acurada. Poder-se-ia dizer que esse tipo de “alta ficção” fica, de fato, mais “baixo” do que uma “baixa ficção” que inclua elementos fantásticos abundantes e bem construídos. Esse, também, é o tipo mais popular de “alta ficção” atualmente, embora eu não vá citar nomes para não perder leitores… Outra via de simplificação é a dos personagens, que pode ser de duas formas: estruturando-os a partir de arquétipos ou de clichês. Pode, também, ocorrer uma decisão deliberada de não desenvolver os personagens, reservando toda a proeminência da história ao desenvolvimento dos elementos de fundo. É uma decisão rara entre os ficcionistas de nossa tradição neolatina e relativamente mais comum entre os autores anglo-saxônicos, uma tradição que remonta aos primórdios da ficção gótica e passa por nomes como Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft. Este é o tipo de opção a que Ashton-Smith recorreu.</p><p>Em que medida a opção pelo cenário em vez dos personagens reflete uma limitação do talento literário do autor, é injusto especular, visto que ele nunca encontrou um meio adequado para a difusão de sua obra, e o público ao qual se dirigiu, através das revistas <i>pulp, </i>não aceitaria uma profundidade muito maior. Ademais, Ashton-Smith possuía um temperamento artístico peculiar que lhe fazia dar atenção minuciosa às descrições. Sua inclinação às artes plásticas naturalmente já o impelia a um detalhismo acima do normal. De certa forma, as obras de Ashton-Smith são pinturas verbais de cenários imaginados, sobre as quais se movem, de forma ritualizada, personagens que não passam de bosquejos ou bonequinhos-palito. Nesse sentido, é muito importante estudar aquela obra que talvez represente, mais que qualquer outra, a epítome da sua ficção: <i>A Paisagem com Salgueiros.</i></p><p>Desde o seu título esta obra evoca a subordinação da figura humana ao cenário em que a ação se inscreve: pode-se dizer que o personagem principal deste conto não é o mandarim Shih Liang, mas a pintura da paisagem com salgueiros que ele tanto ama. Além do protagonista, apenas dois nomes são citados em toda a história: Po Lung, seu irmão (Ashton-Smith não conhecia suficientemente a cultura chinesa para entender os costumes onomásticos), e Mung Li, um colecionador de arte. Além destes personagens nomeados, só temos conhecimento de mais dois, citados <i>en passant: </i>o imperador e a donzela de vestido rosa que habita a pintura (e que, de certa forma, é um personagem). </p><p>Nenhum destes personagens recebe a atenção de uma descrição. De Shih Liang, tudo que sabemos é que “como seus ancestrais, era um erudito, um poeta e um amante da arte e da natureza”; que “era sozinho e não tinha parentes nem amigos”; “herdeiro de muitos débitos e pouca propriedade ou dinheiro, a não ser por um número de tesouros artísticos inestimáveis”; que “se aproximava da meia idade” e que “sua vida era cada vez mais triste e oprimida pela má saúde e pela pobreza” pois seu salário como funcionário da corte era dedicado principalmente à educação do irmão mais novo. De seu irmão nada sabemos, a não ser que era mais novo e se dedicava integralmente aos estudos. De Mung Li, nada a não ser que era “um conhecedor que comprara outras peças de sua antiga coleção”. </p><p>A pintura, porém, recebe uma atenção extraordinária: nada menos do que em cinco dos dezenove parágrafos do conto o autor se detém a descrever ou a relembrar os detalhes da paisagem. Pelo menos um destes, o segundo, é integralmente dedicado a descrevê-la em detalhes. Outros parágrafos se detêm a analisar a relação de Shih Liang com a pintura, em termos equivalentes à descrição de um namoro. É claro, então, que o conflito central da história não é entre personagens: ainda que Shih Liang não tenha bons sentimentos em relação a Mung Li, é difícil considerarmos este homem como um antagonista, visto que o seu interesse por antiguidades é o meio através do qual o desgraçado Shih Liang consegue se sustentar em sua velhice.</p><p style="text-align: right; font-style: italic"><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com.br/2013/06/o-cenario-como-elemento-central-da.html"><br />
Continua</a></p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-91354522255544597152013-05-31T18:00:00.000-03:002013-05-31T18:00:03.287-03:00[Tradução] Abandonados em Andrômeda [10]<div class="TOC" style="text-align: right"><p><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/05/traducao-abandonados-em-andromeda-clark.html">Original de Clark Ashton-Smith</a></p></div><p>Os dois estavam cansados demais de seus trabalhos hercúleos para que pudessem devotar muito tempo e energia à especulações do tipo. Encontraram um lugar abrigado em um ângulo formado pelas paredes e se sentaram. Estavam forçosamente sem comer desde a refeição que lhes fora dada pelos pigmeus ainda de madrugada e parecia não haver possibilidade imediata de encontrar o que comer. Estavam desesperados e não parecia haver nenhuma esperança de aliviar a depressão que envolvia aqueles homens condenados.</p><p>O sol já havia se posto, deixando um crepúsculo enrubescido que manchava o solo, as ruínas e as árvores mortas com uma tintura profunda de sangue. Um silêncio sobrenatural se impunha, um silêncio carregado com a sensação de um mistério estranho, o peso de uma antiguidade ultramundana que se agarrava àquelas ruínas. Os homens se deitaram e começaram a cochilar.</p><p>Acordaram simultaneamente, por um breve momento sem saber o que os acordara. O crepúsculo se tornara de um violeta vivo, embora as paredes e árvores ainda estivessem claramente discerníveis. Em algum lugar desse crepúsculo havia um zumbido estridente e irritante, que se tornava cada vez mais alto.</p><p>O zumbido chegou perto de uma vez, pairando em pleno ar. Ele crescera até um clamor ensurdecedor. Roverton e Deming viram que um enxame de insetos gigantescos, com bicos de doze centímetros, voejava em torno deles, como se não soubessem se deviam atacar. Parecia haver centenas dessas criaturas de aparência tão formidável. Uma delas, mais ousada que as outras, arremeteu-se e ferroou Deming nas costas da sua mão esquerda até que seu bico quase perfurou até a palma. Ele gritou alto com a dor e bateu no inseto com o seu outro punho. Ele arrebentou com o golpe e caiu ao chão, emitindo um fedor nauseante.</p><p>Roverton pôs-se de pé e quebrou um galho de uma das árvores. Ele o agitou contra o enxame, que recuou um pouco, mas não se dispersou. Uma ideia lhe veio e ele jogou o galho nas mãos de Deming, dizendo:</p><p>— Se você conseguir mantê-los afastados, eu vou tentar acender um fogo!</p><p>Enquanto Deming agitava sua arma ineficiente diante do exército indeciso, Roverton quebrou mais dos galhos mortos, empilhou-os e esmagou outros até virarem pó sob seus calcanhares. Então, na penumbra, achou dois pequenos fragmentos da rocha metálica na qual os edifícios haviam sido esculpidos e, batendo os fragmentos um no outro, obteve uma fagulha que caiu na pilha de poeira e a acendeu. A matéria era altamente combustível, pois em menos de um minuto a pilha de galhos estava queimando luminosamente. Aterrorizados pela luz, os insetos recuaram e os seus estrídulos logo diminuíram e desapareceram na distância.</p><p>A mão de Deming estava então dolorosamente inchada e latejando da ferroada que recebera.</p><p>— Esses brutos teriam acabado conosco se tivessem tido a coragem de nos atacar em massa — observou.</p><p>Roverton empilhou mais combustível na fogueira, para o caso do enxame voltar.</p><p>— Que mundo! — ele exclamou — Gostaria que Volmar estivesse aqui!</p><p>Nem bem ele disse isso e ouviu-se um zunido distante no céu crepuscular. Por um momento, os homens pensaram que o enxame de insetos retornara para atacá-los novamente, mas então o zumbido cresceu até um grande rugido. Um rugido de certa maneira familiar, embora nenhum deles pudesse determinar de imediato qual memória ele tendia a evocar. Então, onde as estrelas estavam começando a perfurar os vagos céus, eles viram a forma indistinta que descia em sua direção.</p><p>— Meu Deus! Aquilo é a espaçonave? — gritou Deming.</p><p>Com um rugido final e o rangido de seus propulsores, a forma veio repousar uns quinze metros distante do fogo. A luz cintilou em seu casco metálico e revelou a conhecida escada pela qual os três amotinados tinham descido em uma noite alienígena.</p><p>Uma figura desceu pela escada e veio em direção à fogueira. Era o Capitão Volmar. Sua face estava tensa e lívida à luz da fogueira e ele parecia mais velho do que os dois homens lembravam. Ele os cumprimentou rigidamente, com um estranho traço de constrangimento em seus modos.</p><p>— Estou certamente feliz por encontrá-los — ele anunciou, sem esperar que Roverton ou Deming respondessem à sua saudação — tenho sobrevoado esse maldito planeta o dia inteiro, esperando que houvesse uma chance em um trilhão de achá-los novamente. Eu não fiz nenhum registro do local em que os deixei naquela noite, então é claro que eu não tinha ideia de onde rpocurar. Estava quase desistindo quando vi o fogo e decidi investigar.</p><p>Ele continou:</p><p>— Se voltarem comigo, deixemos o passado no passado. Estou sem tripulação agora, e vou ter de abandonar a viagem e voltar ao sistema solar. Começamos a ter problemas com as máquinas não muito depois que eu os deixei, e dois dos homens foram eletrocutados por um curto-circuito antes que o problema fosse consertado. Seus corpos estão flutuando em algum lugar no éter agora, eu lhes dei um funeral espacial. Então Jasper caiu doente e eu estou tripulando a nave sozinho nas últimas vinte e quatro horas. Eu lamento ter sido tão precipitado com vocês, eu certamente os deixei num tipo de mundo impossível. Eu o percorri todo durante o dia, e não há nada em lugar algum a não ser mares, desertos, brejos, pântanos, selvas de vegetação maluca, um monte de ruínas desoladas e nenhuma vida a não ser insetos superdesenvolvidos, répteis e uns poucos pigmeus trogloditas nas regiões subpolares. É mesmo um portento que sequer dois de vocês conseguiram sobreviver. Venham, vocês podem me contar sua história depois que estivermos a bordo da nave.</p><p>Roverton e Deming o seguiram enquanto ele subia de volta pela escada. A escotilha se fechou por detrás dele com um estrondo que foi mais gracioso aos seus ouvidos que qualquer música. Um minuto depois a nave ascendia aos céus pela curva do crepúsculo, até que encontrou a luz de Delta Andromedæ. Então ela correu pelos abismos siderais até que o grande sol se tornou uma estrela e começou a reassumir seu lugar devido em uma constelação cada vez mais recuada.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-91951862691282432672013-05-30T12:13:00.000-03:002013-05-30T18:26:34.750-03:00[Tradução] Abandonados em Andrômeda [9]<div class="TOC" style="text-align: right"><p><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/05/traducao-abandonados-em-andromeda-clark.html">Original de Clark Ashton-Smith</a></p></div><p>Roverton foi o primeiro a recobrar seus sentidos. Sentindo-se muito fraco e tonto, com os pensamentos e a visão turvados, tentou se sentar e caiu de costas, desamparado. Então, quando seus olhos e mente começaram a clarear, um pouco de força lhe voltou e um segundo esforço foi mais bem sucedido. Seu primeiro pensamento foi no seu camarada, a quem procurou, então. Deming ainda estava onde caíra, em uma posição prostrada e espichada no chão.</p><p>Muitas horas deviam já ter passado, pois o sol estava então pouco acima da borda da planície e as altas colunas de vapores estavam tingidas como as chamas de uma aurora. O próprio solo, úmido e brilhante, ganhara os reflexos de tons prismáticos. Ao se virar, Roverton viu atrás de si, a uma pequena distância, a temível selva de onde ele e Deming tinham sido tão sumariamente ejetados pelas plantas carnívoras. A selva estava comparativamente quita naquele momento, mas os seus galhos e bulbos ainda oscilavam um pouco, e um som baixo e sibilado surgia de dentro dela, como o chiado de um exército de serpentes.</p><p>Roverton conseguiu se pôr de pé. Ainda cambaleava como um paciente febril e mal podia evitar cair. Sua boca estava ressequida e queimava com uma sede avassaladora e sua cabeça ribombava como um tambor. Vendo uma poça de água não muito longe, andou em sua direção, mas foi forçado a terminar a jornada de quatro. Bebeu se sentiu maravilhosamente refrescado pelo fluido escuro e amargo. Enchendo seu boné (que conseguira reter, apesar das vicissitudes dos dois dias anteriores), voltou ao seu companheiro, conseguindo então andar de pé, e espargiu um pouco da água em seu rosto. Deming se mexeu e abriu os olhos e logo pôde beber o resto do conteúdo do boné e então teve sucesso em também ficar de pé e dar uns passos.</p><p>— Bem, qual é a atração seguinte no programa? — ele perguntou. Sua voz estava estridente e instável, mas ainda indomavelmente corajosa.</p><p>— Não tenho ideia — deu de ombros Roverton — mas eu voto por nos afastarmos o mais que pudermos dessa selva bestial.</p><p>Nem ele e nem Deming suportavam pensar no destino de Adams, ou nas coisas abomináveis que tinham visto, ouvido e sentido. Toda a experiência fora insuportável aos nervos humanos e a repulsa os enojava sempre que a lembrança subia dos limites da consciência. Resolutamente eles deram as costas à floresta carnívora e claudicaram em direção ao horizonte difuso e fumegante enfeitado por um esplendor de arco íris.</p><p>A paisagem pela qual eles então caminhavam era como o fundo de um oceano recentemente evaporado. Era uma grande planície de lama fedida, de uma consistência peculiar, que cedia sob seus pés mais ou menos como borracha ou algum tipo de tecido resistente, sem se romper. A sensação propiciada por pisá-la era incômoda e desconcertante. A cada passo, esperavam afundar em algum brejo ou areia movediça. Mas compreenderam porque não tinham sofrido nenhuma contusão ou fratura quando as árvores vivas os haviam atirado com tão irresistível violência.</p><p>Havia muitas poças de água na planície e, pelo menos uma vez, os homens foram compelidos a desviar de seu curso por um lago estreito e tortuoso. O aspecto da lama resistente era indescritivelmente monótono e não era aliviado por nenhuma vegetação ou extrusão mineral. Mas de alguma forma ele não parecia morto, mas dava a sensação de uma vitalidade adormecida, como se possuísse uma vida própria, obscura e secreta.</p><p>Os vapores partiram diante dos raios oblíquos do sol. Não muito à frente Roverton e Deming então perceberam uma elevação baixa em formato de mesa. Mesmo à primeira vista ela parecia uma ilha, e à medida que os homens se aproximaram, as características que revelou indicaram que realmente tinha sido uma. Havia marcas de ondas no solo em torno da base e, em contraste com a total esterilidade da planície, havia rochedos e formas arbóreas nas suas costas onduladas, e também eram visíveis no topo várias muralhas e monólitos arruinados, de uma arquitetura extraterrestre.</p><p>— Agora um pouco de arqueologia andromedana — comentou Roverton, apontando para as ruínas.</p><p>— Sem mencionar um pouco mais de botânica — adicionou Deming.</p><p>Ambos olharam para as árvores e plantas mais próximas com cuidado considerável e grande excitação. Elas eram de tipos similares às monstruosidades da selva, mas eram bem mais esparsas e falhadas, e havia algum outro tipo de diferença. Quando Deming e Roverton se aproximaram delas a natureza da diferença ficou manifesta. Os galhos ofídicos chegavam até o chão e se deitavam sobre ele, mas estavam estranhamente imóveis e sem ação. Vistos mais de perto, estavam murchos e mumificados. Ficou evidente aos cientistas que aquelas árvores estavam mortas há muito tempo.</p><p>Não sem repulsa, Roverton quebrou a ponta de um dos tentáculos pendentes. Ele se partiu facilmente e ele descobriu que se desfazia em uma poeira fina entre seus dedos. Vendo que nada havia a temer, ele e Deming começaram a escalar a colina em direção às fantásticas ruínas.</p><p>O solo da colina, um tipo de greda cinza e roxa, era firme sob seus pés. Eles chegaram ao cume quando o sol começava a desaparecer por detrás da distante linha dos rochedos que se erguiam da planície como as cordilheiras costeiras de um continente.</p><p>Cercadas por carreiras das plantas monstruosas mortas, erguiam-se bem no centro do cume as ruínas que Roverton e Deming tinham vislumbrado desde embaixo. Elas brilhavam à luz com um lustro mortiço e pareciam feitas de algum tipo de pedra estranha, que era fortemente impregnada de metal. Eram aparentemente os restos de vários imensos edifícios e tinham as marcas de algum tremendo cataclismo que levara embora suas superestruturas e até mesmo boa parte dos pisos e fundações. Uma das paredes conservava uma porta que era curiosamente alta e estreita, e mais larga no topo do que embaixo. Havia, também, umas janelas extravagantes bem perto do chão. Os homens se perguntaram quais seriam as características físicas da raça que erguera tais edifícios. Do ponto de vista humano, tudo a respeito daquelas ruínas era arquiteturalmente anômalo.</p><p>Roverton se aproximou de um dos monólitos. Tinha uma forma quadrada, uns doze metros de altura por dois de diâmetro e havia sido claramente mais alto um dia, pois o topo estava rachado e irregular onde teria sido quebrado bruscamente. Era esculpido no mesmo material das paredes. Uma série de baixos-relevos intercalados a colunas de letras hieroglíficas tinha sido gravada junto à base. Os baixos-relevos representavam seres de um tipo curioso, com longos troncos finos que terminavam em cada lado com uma multidão de membros com muitas juntas. As cabeças desses seres, ou o que parecia serem suas cabeças, estavam na extremidade inferior dos troncos e tinham duas bocas que se localizavam acima de uma fileira dupla de olhos. Apêndices parecidos com orelhas pendiam das bochechas. Os membros inferiores terminavam em garras como de aves e os superiores, em amplas teias em formato de sombrinha cujo uso estava além de qualquer conjetura. Roverton exclamou com espanto ao chamar a atenção de Deming para tais figuras. Se tais seres representavam uma raça extinta, ou se seus protótipos ainda poderiam ser encontrados naquele mundo bizarro, era claramente um problema insolúvel. Mas os homens logo pressentiram que este mistério seria logo resolvido. E seria resolvido, eles gostassem ou não.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-89920232123518758112013-05-30T01:02:00.001-03:002013-05-30T01:02:38.515-03:0050000 Visitas.<p>Este blogue acaba de chegar à marca mítica de 50 mil visitas. Levei para isso dois anos e nove meses. Pode não ser um desempenho fantástico se comparado ao dos blogues de humor barato ou de putaria generalizada que existem por aí, mas acredito ser um feito para um pequeno blogue de literatura.</p><p>Apesar dos dissabores ocasionais, especialmente os que resultam de minha frustração com a falta de educação de alguns leitores que se apropriam de meus textos e saem divulgando por aí, acredito que o saldo tem sido positivo — pelo menos em ganhos do AdSense (não, ainda não cheguei aos cem dólares para receber o primeiro pagamento).</p><p>Gostaria de agradecer a todos que já o visitaram e que ainda o visitam. Espero que suas visitas anteriores tenham sido marcadas com alguma coisa significativa que os convenceu a voltar. Espero que futuramente as pessoas continuem voltando e divulgando, como têm feito, especialmente porque eu mesmo pouco vou poder fazer, desde que deletei minha conta do Facebook, por razões que não vou mais explicar.</p><p>A amizade dos meus bons leitores é o que me resta para manter isso aqui funcionando, rumo aos cem mil. Depois, ao alto e além.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-11292374325092071582013-05-29T20:00:00.000-03:002013-05-29T20:00:02.849-03:00[Tradução] Abandonados em Andrômeda [8]<div class="TOC" style="text-align: right"><p><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/05/traducao-abandonados-em-andromeda-clark.html">Original de Clark Ashton-Smith</a></p></div><p>O cenário no qual emergiu era mais louco e selvagem do que as esquisitices de um delírio febril. Por um instante ele pensou que as coisas ao seu redor eram o produto de alguma alucinação, fruto de seu cérebro e nervos superexcitados. O monstro voador estava estendido no chão e envolto, desde a cabeça até a cauda, nos rolos de algo que Roverton só pode designar como uma anaconda vegetal. Os rolos eram verde claros com manchas irregulares violáceas e marrons e pareciam ter dezenas de metros e comprimento. Terminavam em três cabeças cobertas de bocas como as ventosas de um polvo. Os rolos tinham envolvido o pássaro muitas vezes e evidentemente possuíam um poder constritivo enorme, pois tinham se apertado sobre sua presa de tal forma que corpo se deformava entre eles em rugas e protuberâncias nojentas. Estavam visivelmente enraizadas em um solo negro, de aparência viscosa e eram inchados na base como o tronco de uma árvore antiga. As três cabeças tinham se fixado às costas de sua vítima prostrada e estavam obviamente extraindo nutrientes dela através de suas inúmeras ventosas.</p><p>Em torno do pássaro, nos vapores ferventes que subiam do chão como uma fumaça, jaziam as copas que balançavam e os troncos que se retorciam, galhos e antenas de uma mistura de formas vegetais meio ofídicas ou animalescas. Variavam em tamanho de videiras que não eram maiores que cobras corais até bulbos amorfos com centenas de tentáculos que se retorciam, grandes como o mitológico <i>kraken</i>. Não eram menos diversas que as várias espécies de plantas de uma selva terrena, e todas estavam horrivelmente vivas. Muitas eram isentas de qualquer coisa que lembrasse folhas, mas outras tinham copas que pareciam dedos ou um tipo de folhagem que sugeria uma rede de cordas cabeludas e que sem dúvida serviam ao mesmo propósito de teias de aranhas, pois em algumas dessas redes estranhos insetos e mal-afortunados pássaros tinham sido capturados. Outras árvores davam intumescidos frutos ovais ou globulares e tinham flores de aparência carnosa que podiam se fechar como bocas sobre suas presas. Acima delas, além dos vapores fumegantes, um sol inchado e quente ardia desde uma altitude quase vertical. Roverton compreendeu que o monstro-pássaro, voando a muitas centenas de quilômetros por hora, devia tê-los levado a uma zona subtropical do mundo em que estavam abandonados.</p><p><a name='more'></a>Adams e Deming tinham já se esgueirado para fora e estavam de pé ao lado de Roverton. Por um momento nenhum dos três pôde pronunciar uma palavra, na profunda estupefação com que contemplavam as cercanias. Instintivamente todos procuravam uma trilha de escape entre as fileiras de monstruosidade vegetal que os cercavam de todos os lados. Mas não havia nenhuma interrupção em qualquer direção, só uma infinita contorção de coisas que eram claramente venenosas, maléficas e inimigas. E, de certo modo, sentiam que aquelas entidades-planta tinham consciência de sua presença, que os observavam com atenção e que, de uma maneira não reconhecível pelos sentidos humanos, estavam mesmo discutindo ou debatendo a respeito deles.</p><p>Adams se aventurou a dar um passo à frente. Instantaneamente um longo tentáculo saltou de uma das formas titânicas mais próximas e o envolveu. Lutando e gritando, ele foi arrastando até a grande massa escura de onde os tentáculos emanavam. Havia lá uma boca aberta como uma grande taça vermelha, de quase um metro de largura, bem no centro desta massa e, antes que seus companheiros sequer pudessem mover-se, Adams foi atirado dentro da abertura que, então, se fechou sobre ele como a boca de um saco amarrado. Roverton e Deming foram petrificados pelo horror, mas antes que eles pudessem sequer pensar em se mover de onde estavam, mais dois tentáculos saltaram e os agarraram pela altura da cintura. Estavam presos com a firmeza de um cabo de aço e ambos sentiam uma espécie de choque elétrico ao contato — um choque que servia para atordoá-los ainda mais. Quase desmaiando, foram erguidos pelas horríveis gavinhas.</p><p>Nada mais aconteceu por um breve intervalo de tempo. A estranheza incompreensível de sua situação, as inúmeras fadigas e provas do dia, juntamente com os choques daquelas gavinhas, tinham atordoado os dois homens de tal forma que eles mal podiam entender o fim de seu companheiro ou a iminência do seu próprio fim.</p><p>Tudo ficou irreal, nebuloso, onírico. Então, através da vaguidão que envolvera seus sentidos, viram que a massa escura no meio dos tentáculos estava começando a se mexer e a agitar-se. Logo a agitação se tornou uma convulsão que ficou mais e mais violenta. Roverton e Deming caíram ao chão quando as gavinhas afrouxaram e viram o chicotear de uma dúzia de tentáculos no ar acima deles, balançando de um lado a outro sobre a agitada massa central. Então, de dentro desta massa, o corpo de Adams foi ejetado, caindo ao lado de Roverton e Deming. Obviamente, a carne humana não tinha combinado com a digestão do monstro vegetal andromedano. A massa continuou a balançar e palpitar e os seus muitos braços acenavam pelo ar numa forma de agonia.</p><p>Os dois não ousaram olhar para o corpo de seu bravo camarada. Enojados e totalmente esgotados pelo cansaço e pelo horror, eles se prostraram no chão. Depois de um momento, sentiram os tentáculos os envolverem mais uma vez, mas não foram levados à boca central, mas carregados e arrastados em direção ao emaranhado de formas alienígenas além do <i>kraken</i> vegetal. De lá eles foram capturados pelos membros serpentinos de outras plantas vivas e levados adiante através da selva.</p><p>Eles tinham vaga noção de muitos tipos de bocas que se arreganhavam ou mordiam o ar ao seu lado, sentiam os brotos que oscilavam como antenas e tateavam, viram galhos pendentes armados de espinhos como dardos, viram flores vermelhas de metro e meio de largura, com línguas fendidas de que pingava um mel venenoso. E em tudo em volta ouviam o gemido ou os gritos ou os chiados de animais capturados pelas plantas demoníacas, e viam as bocas arreganhadas que devoravam os corpos de suas vítimas, ou as ventosas que se fechavam sobre eles como os lábios de vampiros. Mas entre esses terrores de uma flora transestelear os homens passaram intocados e sem feridas e foram arrastados de gavinha em galho, de rede a flor, através dos bosques inimagináveis. Era como se todas estas coisas carnívoras e mortais tivessem sido advertidas de sua natureza não comestível e os estivessem jogando fora.</p><p>Por fim, a luz ficou mais forte e os homens perceberam que se aproximavam da beira da selva. A última das plantas monstruosas lhes deu um impulso veemente com seus grandes braços e o solo fumegante de uma planície sem árvores moveu-se e rodopiou diante deles enquanto caíam inconscientes sob a luz do sol.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-5440608684732301632013-05-28T18:51:00.000-03:002013-05-28T18:51:00.103-03:00O Pensamento Morto-Vivo de José Geraldo Gouvêa - IVA evocação da falácia do apelo à autoridade é um perigo quando feita em benefício próprio: apesar da possibilidade de você ser mesmo um gênio incompreendido que pensa “fora da caixa” e que, por isto, está na contramão de um mundo bitolado, o mais provável é que você esteja simplesmente se agarrando ao desejo de que as coisas sejam como você quer que elas sejam, o chamado <i>wishful thinking.</i><br />
<br />
Penso que o maior defeito da democracia é que ela ainda não provou ser capaz de construir e manter um império de mil anos, a seu favor se pode dizer que a tirania não consegue tampouco, e ainda se sai pior. Mas se formos avaliar as coisas pelo seu sucesso na sobrevivência, nada supera a estupenda duração do paleolítico.<br />
<br />
Você tem a plena convicção de estar diante de um idiota completo quando ele defende ideias que, obviamente, prejudicariam a um grande número de pessoas, do qual ele mesmo não estaria excluído: judeus neonazis, mestiços eugenistas, trabalhadores direitistas, jovens conservadores, sindicalistas neoliberais, políticos entreguistas, milionários socialistas, mulheres machistas.José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-87025576400518985062013-05-27T22:36:00.001-03:002013-05-27T22:36:49.923-03:00Porque Abandono o Facebook<p>Em algum momento, em meados de abril, eu comecei a fazer uma promessa de que acabaria com a minha conta do Facebook no final do mês de maio. Pois bem, maio chega ao fim e o processo começa. Desde 22 de maio eu não postava mais nada ativamente, as minhas postagens que vocês estão vendo são as que o Networked Blogs coloca por mim. Elas continuarão aparecendo ainda por alguns meses, até que eu supere isso e encontre outras formas de divulgar este blog.</p><p>Você que estava na minha lista do Facebook provavelmente recebeu um contato entre 22 e 29 de maio, contendo um email de contato e o endereço do feed do blogue para que você pudesse segui-lo. Mas a partir de agora não receberá mais nada através da rede social.</p><p>São três as razões pelas quais quis abandonar voluntariamente o Facebook:</p><dl><dt>O tempo consumido online me fazia falta de outras formas</dt>
<dd>Abandonando a rede social eu poderei me dedicar a terminar dezenas de obras literárias que eu comecei e nunca terminei. Este blogue ficará mais ativo e eu procurarei outras formas de divulgar o meu trabalho, formas que não me envolvam em assuntos paralelos. E nem menciono os ganhos da vida pessoal e conjugal.</dd>
<dt>Os debates em que me envolvia me tornavam confuso</dt>
<dd>Houve uma época em que debater foi importante, eu desenvolvi muito a minha retórica e a minha capacidade de argumentação a partir deles. Aprendi muito sobre lógica formal e estrutura narrativa, sem falar na quantidade de coisas que li sobre os temas mais variados, que aumentaram a minha cultura geral. Mas no momento presente eu preciso de focar em coisas que são mais centrais e importantes, os debates começaram a me exigir tempo que me faltava, em parte porque hoje eu não tenho a vitalidade mental e nem o tempo livre que já tive.</dd>
<dt>Debater no Facebook ficou perigoso</dt>
<dd>Existe uma grande onda de imbecilidade argumentativa, de adesismo a filosofia superficial. Mesmo pessoas aparentemente inteligentes se saem com discursos nocivos, egoístas e desestruturantes. Essa gente não está organizada, mas há estruturas por detrás desse pensamento, estruturas que não são inocentes. Nos últimos dois anos tive várias oportunidades de perceber como existe uma seleção do discurso que flui mais fácil, e uma repressão do discurso de contraponto. Não se trata apenas de apagar peitos e deixar vídeos de decapitação, existe mais coisa por detrás, e eu não quero ficar exposto a isso. Já passei da fase de herói, tenho mais com o que me preocupar. E sinceramente desejo aos inocentes úteis que aceitam essas ideologias que se fodam excelentemente no caso de triunfo delas (ainda que eu saiba que o fodido principal seremos nós que andamos remando contra a onda de merda nos últimos dez anos, pois “o cocô nos cobrirá”).</dd></dl><p>Algumas amizades virtuais me deixarão saudade, ainda que algumas eu já tenha deletado de meu Facebook. Dentre as que estão já no Plus, <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/105087352677469719642" target="_blank">+Ligia Amorese</a>, <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/111050481904543795607" target="_blank">+João Francisco Dantas</a>, <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/113704210955225985591" target="_blank">+Francisco Quiumento</a>, <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/117973858169204724975" target="_blank">+Mário César Mancinelli de Araújo</a>, <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/105021838645030117890" target="_blank">+Felipe Colbert</a>, <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/113833791585107804586" target="_blank">+Sergio Ferrari</a>, <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/114338490934462755317" target="_blank">+Frodo Oliveira</a>, <a class="g-profile" href="http://plus.google.com/103297369933186529522" target="_blank">+Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa</a>, <complete id="goog_145960108"></complete> e outros que não me lembro nesse momento, pois é muita gente que nunca vi e que passou pela minha lembrança.</p><p>Adeus a todos. Sigam-me os bons.</p><p>E aos que surfam na onda: fechem a boca quando derem na praia, para não engolirem nada amargo ao tomarem o caldo.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-73179855206804157582013-05-26T14:21:00.000-03:002013-05-26T14:21:10.898-03:00Aviso aos Leitores de “Abandonados em Andrômeda”Ocorreram alguns erros na transcrição do texto das primeiras partes, resultando na falta de pelo menos doze parágrafos no total. Acabo de corrigir as postagens, acrescentando os trechos faltantes. Recomendo aos leitores que recomecem a leitura, para que não fiquem perdidos no contexto.José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-49871384533029061262013-05-26T13:41:00.000-03:002013-05-28T23:23:49.840-03:00[Tradução] Abandonados em Andrômeda [7]<div class="TOC" style="text-align: right"><p><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/05/traducao-abandonados-em-andromeda-clark.html">Original de Clark Ashton-Smith</a></p></div><p>Os três subitamente tomaram consciência de uma fadiga arrasadora e persistente, uma reação irresistível a todo o perigo e sofrimentos por que tinham passado. Mas a perspectiva de emergir desse submundo de horrores misteriosos fê-los reunir as forças restantes dos membros encharcados, nadarem em direção à boca da caverna e flutuarem através de sua abertura negra rumo ao brilho prateado de um grande lago. Este era, provavelmente, o mesmo visto no dia anterior. Sua aparência era inefavelmente estranha e desolada. Altos rochedos com muitos contrafortes e chaminés se erguiam acima da caverna de que tinham emergido e se estendiam de ambos os lados em linhas descendentes até sumirem em grandes vargens de pântanos e areias. Não havia nenhum sinal de vegetação em lugar algum — nada senão a pedra nodosa dos rochedos, a lama cinzenta das charnecas e as águas mortas e desbotadas. A princípio, os homens pensaram que não havia nenhum tipo de vida. Nadaram ao longo do rochedo, buscando lugar para pisar. As vargens de pântanos e areias pareciam a quilômetros de distância e o progresso no lago preguiçoso era excruciantemente lento e tedioso. Sentiam-se como se as águas estéreis e estranhas os tivessem empapado até os ossos e uma inércia mortal os subjugava e dopava seus sentidos até tudo se confundir em uma mancha monótona e vaga. Estavam exaustos demais para falar, até para pensar. Confusa e desesperadamente, bracejaram rumo à meta sempre recuada de uma margem distante. De algum modo, perceberam que uma sombra recaíra sobre si, rompendo o brilho difuso do sol perdido na neblina. Estavam cansados demais para olhar para cima, ou mesmo especular a origem da sombra. Então ouviram um berro ríspido e trepidante e um bater como de asas rígidas e enormes, e algo mergulhou em sua direção e pairou sobre eles. Virando suas cabeças na água, os três homens viram uma coisa incrível. A coisa que lhes sombreava era uma criatura alada gigantesca com asas ossudas de couro que teriam pelo menos quinze metros de ponta a ponta. Lembrava aquele monstro voador pré-histórico, o pterodátilo, mas também um pelicano, porque abaixo de seu bico de dois metros havia um papo prodigioso. Mal podendo crer nos seus olhos, os nadadores contemplaram a aparição que pairava sobre si. Ela os vigiava com olhos malévolos e ardentes, grandes como pratos, e então, com horrível agilidade, ela desceu. Adams, que estava mais perto, sentiu o grande bico se fechar sobre si e erguê-lo da água, e antes que pudesse entender o que estava acontecendo ele se achou no seu papo. Deming foi capturado e posto ao seu lado um momento depois e Roverton, que tinha instintivamente mergulhado abaixo da superfície, foi buscado e arrastado pelo bico pescador como se fosse um linguado e se juntou aos outros dois.<p><p><a name='more'></a>Inteiramente atordoados, tatearem na fétida escuridão do papo e foram derrubados, prostrados e amontoados enquanto o monstro arremetia rumo aos céus. Havia coisas parecidas com enguias retorcendo-se sob seus pés e respiravam uma mescla de fedores sufocantes. Nada podiam ver, mas a escuridão em que jaziam não era um negrume absoluto, pois as paredes do papo eram bastante transparentes para que a luz criasse uma penumbra sangrenta. Podiam ouvir alto o bater das asas de couro, sentir o palpitar ritmado de sua vibração e, enquanto tentavam se habituar à peculiar situação, tiveram a impressão de que eram levados em um voo vertiginoso, a uma grande altitude. Roverton foi o primeiro a falar.</p><p>— Dentre todos os improváveis desdobramentos, nenhum autor de ficção ousaria imaginar isso! Suponho que a criatura tem um ninho em algum lugar e nos está levando para casa a fim de dar de comer aos filhotes ou ao parceiro.</p><p>— Ou tento capturado um suprimento de carne viva, está indo a algum lugar seguro para ingerir suas vitaminas — sugeriu Adams.</p><p>Um riso tímido respondeu a piada.</p><p> Bem, — adicionou Deming — de qualquer forma, estamos ganhando uma carona grátis, pelo menos uma vez não temos que andar, correr ou nadar.</p><p>O tempo passou de uma forma duvidosa e confusa. O bater das asas tinha diminuído até se tornar um leve sibilado tal como no voo sem esforço de um imenso abutre ou ave de rapina. Ainda havia, porém, a sensação de prodigiosa velocidade, de horizontes e horizontes deixados para trás, de planícies e águas e montanhas desaparecendo em uma rápida sucessão.</p><p>Os homens ficaram enjoados e tontos com o ar nocivo de sua prisão, recaíram em períodos de semiconsciência de que acordavam assustados. No novo horror de sua posição eles quase perderam a noção de identidade, como se fossem parte de um pesadelo monstruoso ou alucinação.</p><p>Depois de um tempo indeterminado, sentiram uma desaceleração do voo e ouviram outra vez os atordoantes estalos daquelas grandes asas, à medida que o pássaro mergulhava em direção ao chão. Parecia descer de altura superior à dos Alpes, com tremenda velocidade.</p><p>Então a descida foi interrompida com um movimento abrupto, como a parada de um elevador. A um súbito jorro de luz no interior do papo, Roverton e os seus companheiros perceberam que a criatura tinha aberto o bico como se fosse capturar algo. Então, com um grito rouco e ensurdecedor, começou a se agitar em uma estupenda convulsão, atirando os homens violentamente de um lado para outro dentro do papo flácido. Era impossível imaginar o que acontecia, toda a circunstância era supremamente misteriosa e assustadora.</p><p>Adams e Deming foram praticamente nocauteados pela sacudida que levaram e Roverton foi o único que conseguiu reter alguma coisa de sua consciência. Ele compreendeu que o pássaro estava envolvido em algum tipo de briga ou combate. Depois de um breve intervalo, os seus esforços ficaram menos agitados e menos fortes, e por fim, com berro diabólico e rouco, ele pareceu cair e ficar imóvel, a não ser por estremecimentos ocasionais que se sentiam no corpo e no pescoço, com o qual se comunicava o papo. Esses estremecimentos diminuíam em força e frequência. O pássaro estava então caído de lado, e entrava luz no papo diretamente através de seu bico arreganhado.</p><p>Certificando-se de que os seus companheiros já haviam recuperado os sentidos, Roverton se arrastou na direção da luz. Os outros o seguiram. Retorcendo-se através da boca babosa, onde gotejava um fluido parecido com sangue, Roverton conseguiu ficar de pé, ainda tonto, e olhar em volta.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-42466290331882602292013-05-24T22:12:00.001-03:002013-05-28T23:25:38.978-03:00[Tradução] Abandonados em Andrômeda [6]<div class="TOC" style="text-align: right"><p><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/05/traducao-abandonados-em-andromeda-clark.html">Original de Clark Ashton-Smith</a></p></div><p>A borda não estava tomada pelos pigmeus e o monstro lagarto tinha avançado até que os três homens não tinham mais espaço do que o suficiente para ficarem de pé na beira do precipício, sobre um arco em lua crescente formado por seu corpo.</p><p>A cerimônia executada pelos pigmeus chegou ao fim, suas genuflexões e cantorias cessaram e todos voltaram seus olhos para os amotinados em uma contemplação simultânea e atenta. Os quatro que montavam a criatura lagarto exprimiram em uníssono uma simples palavra de comando:</p><p>— Ptrahsai!</p><p><a name='more'></a>O monstro abriu sua bocarra e avançou com a mandíbula pendente. Seus horrendos dentes eram uma grade em movimento, seu hálito um vento fedido. Não havia tempo para o terror e nenhuma chance de resistir: os homens cambalearam e escorregaram na borda estreita e caíram simultaneamente no vazio. Na queda, Roverton agarrou automaticamente o mais próximo dos pigmeus, segurou a criatura pela sua tromba e a trouxe consigo enquanto caía pelo ar. Ele e os companheiros mergulharam na lagoa levantando muita água e afundaram até bem abaixo da superfície. Com uma coordenada presença de espírito eles todos se aproximaram o mais perto que puderam da parede da caverna e começaram a procurar onde se apoiar. Roverton não soltara seu pigmeu. A criatura ganiu ferozmente quando sua cabeça surgiu acima da água e tentou arranhá-lo com suas longas unhas dos pés.</p><p>O precipício era liso e íngreme a partir da beira d’água, sem nenhuma reentrância visível. Os homens nadaram desesperadamente em volta, buscando uma abertura ou uma beirada. A coisa com bocas e olhos começara a se mover em sua direção e eles se sentiam nauseados de terror e repulsa ao verem-na flutuar fosforescente. Havia uma deliberação maldita, uma vagarosidade apavorante em seu movimento, como se soubesse que não havia por onde suas vítimas pudessem fugir ao arreganhamento elástico daquelas cinco abomináveis bocas. Ela se aproximou, até que a parede da caverna junto aos nadadores ficou brilhante com refulgência vil da cabeça pendente. Eles podiam ver abaixo e além da cabeça o brilho distorcido de um longo e amorfo corpo submerso nos abismos negros da lagoa.</p><p>Roverton era o que estava mais perto do monstro quando ele se aproximou. Seus olhos malignamente arregalados estavam totalmente voltados para ele e sua boca mais protuberante se abria mais largamente e babava uma gosma execrável. Logo ela estava ao seu lado e ele podia sentir a inexprimível corrupção de seu hálito. Foi empurrado para a parede da caverna e, conseguindo se estabilizar por um momento, empurrou o pigmeu em direção à boca que se aproximava. O pigmeu berrou e lutou em um estado frenético de medo até que os horríveis lábios babosos se fechassem sobre ele. O monstro pausou, como se seu apetite e sua curiosidade se tivessem aplacado por ora e os três homens tiraram vantagem disso para continuar sua exploração da parede.</p><p>Subitamente eles perceberam uma abertura baixa no rochedo liso, de onde as águas fluíam com um borbulhar silencioso. A abertura era estreita e seu teto deveria estar bem menos de meio metro acima da superfície. Ela poderia ou não oferecer uma fuga da lagoa, mas não fora possível detectar outra saída. Sem hesitação Adams nadou para dentro da abertura e os outros o seguiram.</p><p>As águas abaixo ainda eram profundas e eles não tocaram o fundo em lugar algum. As paredes da caverna menor eram luminosas no começo, mas a luminosidade logo cessou e ficaram em absoluta escuridão. Nadando em frente, não podiam mais sequer avaliar a altura da bolsa de ar acima. Nunca, porém, se sentiram compelidos a mergulhar sob a superfície e logo descobriram que a caverna se alargara o bastante para permitir que nadassem lado a lado. Também perceberam que tinham sido tomados pelo fluxo de uma torrente que se intensificava e que os levava a uma velocidade considerável. Como não havia sinal de perseguição pelo monstro da lagoa, os homens começaram a sentir um leve reavivamento da esperança. Claro que a corrente poderia carregá-los para as entranhas daquele terrível muito transestelar ou poderia atirá-los a qualquer momento em um abismo medonho, ou o teto poderia abaixar e amassá-los sob a força das fétidas águas. Mas mesmo assim eles sentiam que havia uma chance de emergirem ao final, e quase qualquer coisa seria melhor do que a proximidade do monstro luminoso de hálito mefítico e numerosos olhos e bocas. Provavelmente a caverna em que nadavam então era estreita demais para permitir a entrada de sua massa nojenta.</p><p>Por quanto tempo flutuaram na acelerada corrente, era impossível que soubessem. Tudo que podiam saber era que não havia mudança em sua situação, nem podiam estimar o quanto haviam penetrado naquele mundo subterrâneo. A escuridão pesava sobre eles, parecendo não ser menos opaca e densa que a água e as paredes da caverna. Eles se resignaram com a progressão no escuro da corrente, economizando suas forças o quanto podiam, para qualquer emergência futura que pudesse aparecer.</p><p>Por fim, quando parecia que estavam irrecuperavelmente perdidos nas sólidas trevas abissais, quando seus olhos já haviam esquecido a própria lembrança da luz, a escuridão diante deles foi penetrada por um pontinho de luz. A luz cresceu devagar, irregularmente, mas por um momento tiveram dúvida de sua natureza, sem saber se estavam se aproximando de outra câmara fosforescente ou da verdadeira luz do dia. Mesmo assim eles ficaram gratos por seu ralo brilho. A corrente se tornara ainda mais veloz e agitada, com trechos de corredeiras entre rochas pelos quais a descida era impetuosa e arriscada. Mais de uma vez foram quase jogados contra as escuras e ásperas massas que se erguiam em torno de si.</p><p>De repente a corrente se acalmou e as corredeiras fervilhantes morreram em uma lagoa ampla sobre a qual a altura de um domo de caverna era discernível. A luz se derramava em um jorro de radiância pálida através da lagoa, vinda de onde evidentemente estava a boca da caverna, e além desta uma larga lâmina de água iluminada pelo sol se estendia e se perdia na distância luminosa.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-13033742331854740422013-05-21T22:59:00.000-03:002013-05-27T22:50:15.042-03:00Dolores, com Pudores<p>Vladimir contemplou um raio de sol nadando no copo de cerveja e sentiu a leve pontada de um pequeno espinho no peito, que o fez tropeçar nas batidas como se o relógio histórico tivesse uma engrenagem empenada. Era tarde já, embora ainda nem fossem sete da noite. Tarde para sonhar com Dolores.</p><p>Então ouviu a voz dela no rasgo de um sorriso e teve vontade de pagar conta e sumir, ou ir embora deixando tudo na pendura, pondo pelo menos uma rua entre ele, Dolores e a praça. Mas era preciso resistir, mesmo porque não haveria nenhum consolo nas paredes nuas do apartamento, não naquela noite fria de junho, que amanheceria vestida de branco e perto de zero.</p><p>A voz rouca de Dolores ecoando na praça da cidadezinha, brincando com suas dores no peito, seu hálito pentrante e sua alma amarga. Ela, porém, não era doce, mas ácida. Subitamente deu-se conta de estar sorvendo o vento de dentro do copo extinto. Entornou mais da garrafa e pediu alguma coisa salgada para acompanhar, alguma coisa que ajudasse a morrer cedo.</p><p><a name='more'></a>Então ela entrou, pinoteando como uma lebre, indecente como só as jovens sabem ser. Maldita! Virou o resto da cerveja e impostou a voz para pedir a conta, surpreendendo à balconista:</p><p>— Não vai esperar a porção de salaminho?</p><p>— Fica para outro dia, está piorando muito rápido, esse frio.</p><p>Dolores saiu levando alguma garrafa colorida e ele recebeu o troco com um gesto de coitado e a calma de quem não vai dormir tão cedo nem acordar tão tarde. Vladimir nem lembrava mais porque pedira a conta, queria poder ficar, mas não queria que o achassem estranho, não mais.</p><p>Saiu do bar e não viu sinal na praça que restasse dela. Mas em algum lugar reverberava a risada rouca. Na lembrança, ou também por perto? Dolores mesma, ou a sua assombração na culpa sufocada da alma de Vladimir, mais velha que o corpo e menos predisposta à calma.</p><p>Então deu de ombros, soltou um suspiro como se exalasse uma doença e foi andando devagar para casa. Sentia-se pequeno, enrugado, imundo e triste. Tomou o caminho mais longo, como quem procura um cemitério. A casa de um solteiro sempre tem um ar funéreo.</p><p>Ia distraído, contemplando os detalhes de todas as flores e de cada laje da calçada, não ouvia nenhum passarinho e sentia falta de borboletas. O chão andava frio e a sola do sapato era tão fina que sentia o chão enregelar sua carne quando pisava. Mesmo assim, a cada passo, os pés se arrastavam mais naquele chão. Quanto mais longe, menos Dolores e menos calor. O sono viria cedo, viria frio, seria o medo e amanheceria despenteado na larga cama. E era tarde, muito tarde.</p><p>— Olá, Humberto!</p><p>Voltou-se para ver Dolores sorrir diante de si e era como se ela o percebesse.</p><p>— Não sou nenhum Humberto, ó Dolores.</p><p>— Não faz mal. Para mim você sempre vai se parecer com o tio Humberto.</p><p>Vladimir sentiu algo tremer na carne ao ouvir a curta, mas nociva, relação de parentesco. Estava começando a ter traumas disso.</p><p>— Ora, não me chame pelo nome de seu tio, por favor!</p><p>— Não gosta de Humberto?</p><p>— Ó não, não é que eu ache feio o nome…</p><p>— Então deixa eu te achar parecido com o meu tio Humberto.</p><p>— Por que você não pode me achar parecido comigo mesmo?</p><p>Dolores riu sem peso e o foi acompanhando em seus patins. Na calçada regular quase não se ouvia as rodas. </p><p>— Vem cá, gostou do cachorro quente?</p><p>— Cacho… Ah, sim, gostei. Você me viu?</p><p>— Claro que vi.</p><p>— Não havia ninguém na rua naquela noite.</p><p>— Mas eu não estava na rua naquela noite, dãã!</p><p>— Então…</p><p>— ‘Tá, fala logo se gostou!</p><p>O pedido dela era uma ordem.</p><p>— G-gostei, claro.</p><p>— Então volta lá para eu poder lhe preparar um do meu jeito.</p><p>— E como é o seu jeito?</p><p>— Com muuuito molho…</p><p>— Prometo que apareço.</p><p>— Mas você vai gostar do que eu vou fazer?</p><p>O pobre Vladimir olhou-a de frente, sem saber como responder a tal pergunta. Claro que gostaria. Gostaria de tudo que ela lhe fizesse, embora nem estivesse pensando em cachorros quentes naquele minuto. Porém segurou a emoção escoiceante, assentou-se de novo em sua caretice protocolar e se asseverou de que ela só lhe faria um lanche, nunca nada mais. A provocação só existia em sua mente torpe. Olhando de soslaio, fingindo interesse transcendental e metafísico por uma árvore igual a dezenas de outras da cidade, disse apena que:</p><p>— Sim, Dolores, prometo que vou gostar do que você fizer.</p><p>— Então venha logo, que eu quero lhe mostrar tudo que sei fazer.</p><p>Ela provavelmente falava da variedade de sabores e salgados, mas ele passava em outras coisas com a sua mente rodopiante, como se nas presas houvesse, mesmo depois de quarenta anos, um veneno jovial capaz de lhe dar forças. Quarenta anos, a idade que teria quando Dolores deixasse de ser crime.</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-6932025654517629434.post-27977050870503184102013-05-20T18:36:00.000-03:002013-05-28T23:25:56.557-03:00[Tradução] Abandonados em Andrômeda [5]<div class="TOC" style="text-align: right"><p><a href="http://letras-eletricas.blogspot.com/2013/05/traducao-abandonados-em-andromeda-clark.html">Original de Clark Ashton-Smith</a></p></div><p>Aparentemente, a uma voz de comando, os guardas se aproximaram da boca da caverna e sinalizaram aos homens que saíssem. Eles obedeceram. Bandejas cheias da pasta branca e copos de uma bebida negra e doce foram postos diante deles e enquanto comiam e bebiam toda a assembleia os olhava em silêncio. Parecia ter havido algum tipo de mudança na atitude dos pigmeus, mas a natureza desta, ou o que poderia implicar, estava além do entendimento. Todo o procedimento era extremamente misterioso e tinha quase o ar de algum sacramento sinistro. A bebida negra deveria ser um pouco narcótica, pois os homens começaram a se sentir como se tivessem sido dopados. Houve um ligeiro amortecimento de seus sentidos, embora seus centros cerebrais permanecessem alertas.</p><p>— Não gosto disso — murmurou Roverton.</p><p>Ele e os demais sentiam uma crescente inquietação, para a qual não podiam indicar nenhuma razão determinada. E eles não se sentiram nada tranquilizados quando os três monstros-lagartos, seguidos de mais dois parecidos, reapareceram junto à margem da córrego. Todos eram montados por pigmeus armados que, quando chegaram perto, sinalizaram que os homens deveriam precedê-los em sua marcha. Os amotinados começaram a andar vale abaixo, com os guardas montados e toda a assembleia os seguindo.</p><p><a name='more'></a>Logo a margem ficou mais estreita e os paredões mais íngremes. O chão se limitou a uma trilha de menos de metro de largura, ao lado da qual as águas fluíam com sombria veemência em uma série de corredeiras mordidas por espuma amarela. Passando por uma curva na parede, os homens viram que a margem terminava em uma grande boca de caverna. Adiante os rochedos se erguiam perpendicularmente da torrente.</p><p>Os três hesitaram ao aproximar-se da caverna. Qual seria seu destino eles nem podiam conjeturar, mas a sensação de alarme e inquietação aumentou. Olharam para trás e viram que a coisa lagarto mais adiantada estava bem perto deles, arreganhando a boca mais horrivelmente que a caverna escura. Pensaram em pular na torrente, mas a correnteza estava cheia de rochas afiadas e um troar além dos rochedos sugeria a proximidade de uma catarata. As paredes acima do caminho eram impossíveis de escalar, então eles entraram na caverna.</p><p>O lugar era bastante espaçoso em comparação com as cavernas habitadas pelos pigmeus e os homens não foram forçados a curvar-se em momento algum. Mas, cegos pela luz do dia que haviam deixado, tropeçaram em pedras e bateram contra as paredes tortuosas enquanto tateavam na escuridão completa. Um jato de ar frio e fétido surgiu como um vento subterrâneo do coração da caverna e um dos monstros estava respirando nos seus calcanhares. Não podiam ver nada, ter certeza de coisa alguma, mas eram forçados a continuar, sem saber se o passo seguinte os atiraria em algum buraco terrível ou abismo sem fundo. Uma sensação de grave ameaça e de horror sobre-humano logo cresceu neles.</p><p>— Este lugar é escuro como a carvoaria do Hades — brincou Roverton. Os outros riram bravamente, mas seus nervos estavam no limite devido à sinistra expectativa e à incerteza.</p><p>A corrente de ar empestado e mefítico ficou mais forte. O cheiro de águas estagnadas e sem sol que ficavam em alguma profundeza imperscrutável, mesclado pelas narinas dos homens a um fedor nauseante como o de catacumbas infestadas de morcegos ou tocas de animais imundos.</p><p>— Eca! — resmungou Deming — Isso é pior que gorgonzola e tripas de raposa juntos.</p><p>O chão da caverna começou a se inclinar para baixo. Passo a passo o declive aumentou como um alçapão infernal, até que os amotinados mal podiam ficar de pé no escuro.</p><p>Remoto e discreto, como uma pequena mancha fosforescente, uma luz amanheceu nas profundezas. As paredes da caverna, dolorosamente caneladas e arqueadas, ficaram então discerníveis. A luz ficou mais forte à medida que os homens continuaram, e logo estava ao redor deles, derramando raios azuis-claros de uma fonte subterrânea indistinta.</p><p>O declive terminou abruptamente e chegaram a uma vasta câmara cheia da estranha radiância, que parecia emanar do teto e das paredes, como um tipo de radioatividade. Estavam em uma elevação semicircular e perceberam, após cruzá-la, que ela terminava num corte e havia uma queda livre de mais ou menos quinze metros até uma grande lagoa no centro da câmara. Havia saliências no lado oposto da caverna que ficavam à mesma altura daquela em que estavam, e havia cavernas menores que partiam destas. Mas parecia que nenhuma das cavernas poderia ser atingida a partir da saliência em que terminara a descida. Separando-as, havia paredes perpendiculares que não permitiam nem por um momento que se apoiasse um pé em lugar algum.</p><p>Os três homens ficaram de pé à beira da lagoa e olharam em torno. Podiam ouvir o barulho do primeiro monstro-lagarto ainda na descida e podiam ver o brilho maligno de seu único olho enquanto ele avançava.</p><p>— Isto parece a última folha do último capítulo.</p><p>Roverton estava então olhando para baixo em direção à lagoa. Os outros seguiam seu olhar. As águas eram foscas, imóveis, escuras e não reluziam com o brilho azulado das paredes da caverna. Eram como algo que ficara dormindo ou morto por milhares de anos e o fedor que subia delas sugeria eras de lenta putrefação.</p><p>— Bom Deus! O que é aquilo?</p><p>Roverton notara uma mudança nas águas, um brilho curioso que vinha debaixo da superfície, como se uma lua afogada estivesse nascendo delas. Então a calma morta da lagoa foi rompida por um milhão de ondulações e uma vasta cabeça, gotejando com uma luminosidade nojenta, emergiu das águas. A coisa teria dois metros ou mais de largura, era horrivelmente arredondada e amorfa e parecia consistir principalmente de bocas arreganhadas e olhos arregalados, tudo costurado em um louco caos de malignidade e horror. Havia pelo menos cinco bocas, cada uma delas bastante grande para devorar um homem em uma bocada só. Eram desdentadas e elásticas. Distribuídos entre elas, os olhos ardiam como brasas satânicas.</p><p>Um dos monstros-lagarto tinha rastejado até a beira. Dúzias de pigmeus estavam reunidos ao lado e além, e alguns deles avançaram até onde estavam os homens. Eles olharam para a coisa medonha na lagoa e fizeram gestos desajeitados e genuflexões com suas cabeças, mãos e trombas, como se a estivessem invocando ou adorando. Suas vozes agudas se ergueram em um cantochão ondulante.</p><p>Os homens ficaram quase estupefatos de horror. A criatura no abismo era além de qualquer coisa das lendas e pesadelos terrestres. E os ritos do culto oferecido pelos pigmeus eram incrivelmente revoltantes.</p><p>— A Coisa é seu deus! — gritou Roverton — E eles vão nos oferecer em sacrifício!</p>José Geraldo Gouveahttp://www.blogger.com/profile/07509376623243299616noreply@blogger.com